quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O MATADOR DE INSTANTES - Enio Andrade

foto P.R.Baptista

     Amorim era um funcionário público que vivia sempre em contradição, não sabia muito bem o que queria da vida.  Sua vida no trabalho era como todo o seu cotidiano, maçante e incipiente. Porém, ele gostava de pensar que tinha ali em algum lugar dentro de si uma certa dose de sensibilidade, difícil era isso se manifestar em meio a essa sua condição cultural. Durante o dia estava sempre em contato com essas pessoas comezinhas que só falavam sobre coisas vãs, conversavam também sobre coisas vis, se é que vocês me entendem, à noite ficava passeando pela cidade a procura não se sabe de que. Enfim estava cansado de tudo aquilo, nada acontecia. mesmo seus relacionamentos amorosos, que diga-se de passagem eram muitos, não faziam diferença nenhuma. Sua vida começou a mudar quando ele conheceu Rebeca, ao contrário de seus outros casos essa mulher era diferente, uma mulher refinada sem dúvida. Com ela ele experimentou uma vida bem próxima do que ele imaginou em seus devaneios. Ela o levou a outros ambientes, onde ele pode entender não só que outra vida era possível, mas que principalmente esta vida estava bem ali na sua frente só esperando que ele a agarra-se. A proposta era tentadora, nunca mais ele iria enfrentar o mais do mesmo, que era como chamava a sua vidinha.

          Começou a se interessar por outras coisas e como era de seu costume, gostava de ir a fundo em tudo o que fazia, mesmo autodidata, até que obtinha êxito em suas tentativas na busca de mais conhecimento. Foi assim que começou na fotografia, foi quase por acaso. foi Rebeca, sempre ela, que o apresentou a um fotografo profissional que na época estava trabalhando em uma revista. não se sabe por que, talvez nunca saibamos, o fato e que a fotografia tomou conta de sua vida. Parece que ele sempre esperara por aquilo, era um encantamento só. Ele não sabia como começou, mas pensava cada vez mais em eternizar o instantâneo, era assim que ele falava, parecia que aquilo não era só como a maioria das pessoas encara aquilo que faz, uma atividade que tem um fim em si mesma. Para ele não, era muito mais do que isso, é difícil explicar, mas, era como se sem a fotografia ele nunca tivesse respirado. Abandonou o serviço público e foi viver só da fotografia, foi aí que começou a ficar cada vez mais arredio.                  

          Rebeca logo notou e após algum tempo o deixou, fato que só fez piorar o seu distanciamento da realidade, começou a usar drogas e a ficar cada vez mais confuso, não sabia mais o que era ele ou o que era sua arte, era assim que ele chamava as suas fotos. às vezes mal amanhecia e ele já estava na rua, procurando não se sabe bem o quê? alguma nuance de luz, um olhar diferente, um rosto com significado, ou, a beleza da simplicidade das pessoas passando em um instante de suas vidas comuns e especiais ao mesmo tempo. Foi assim que desenvolveu o seu poder de observação para descobrir o que nem todos viam e ele escolheu entre o que via o desespero, começou a ter uma atração mórbida por esses flagrantes. 

          À noite, quando ele examinava o material do dia transcorrido, os momentos de desespero eram os que mais o excitavam, mexiam com ele e ele não sabia como aquilo acontecia. Passou então a sair e procurar só pelos desesperados.

           Num dia qualquer entrou em uma lojinha para comprar incenso, passara o dia atrás de uma novidade e próximo de casa, já cansado, tivera aquela ideia, após pagar o incenso quase na saída ao olhar para o lado notou que havia uma máquina fotográfica muito antiga em um canto da loja, parecia estar à venda. Resolveu perguntar ao dono quanto custava, quem sabe se fosse possível, talvez conseguisse restaurar e vender por um preço melhor. Após regatear um pouco o cara resolveu negociar e ele levou para casa aquela relíquia, ao chegar foi logo manuseá-la, até para saber se estava funcionando. 

          A única coisa viva que tinha em casa era uma um peixe dentro de um aquário, fora presente de Rebeca. Só não sabia como ele ainda sobrevivia naquele ambiente sem nenhum cuidado, às vezes, à noite, quando se lembrava de comer atirava alguma sobra para o pobre. Resolveu fotografar o bicho, claro que antes usou a sua dose habitual, ao começar a sequência teve um pensamento maravilhoso, e se ele conseguisse com aquela máquina capturar o instante supremo daquele peixe, como se depois daquele instante ele não conseguisse mais ser um peixe maravilhoso que era naquele instante que já havia passado, que maluquice. Ah, se isso pudesse ser verdade, era isso que o levara até a fotografia. Em seguida dormiu, já não se aguentava mais.

           No outro dia acordou cedo e saiu como sempre atrás de seus olhares desesperados. Levou a máquina consigo, conhecia um fotografo mais velho que manjava dessas coisas mais antigas. O lugar ficava no outro lado da cidade. No caminho até lá poderia aparecer alguma oportunidade, que nada, o tempo passava e nada. Um gato estava brincando com uma lata, usou a máquina antiga, logo em seguida encontrou dois mendigos numa esquina usou outra vez, após não encontrou mais nada. 

          Ao chegar à lojinha do fotografo deixou a máquina para ser avaliada e pediu para que ele ligasse à noite porque não pretendia vir para aqueles lados no outro dia. Pediu ainda, que se ele soubesse de algum interessado em negociar a máquina o avisasse logo, pois estava precisando muito de uma lente nova, desde que deixara o serviço público nunca mais pudera adquirir um material novo, vida dura a de artista. 

          O resto do dia transcorreu na normalidade, ao chegar em casa sem praticamente nenhum material foi direto para a sua dose cotidiana de relaxamento compulsório. Foi depois de a droga fazer efeito que notou o peixe boiando no aquário, ficou num misto de surpresa e algum medo, porque recordou aquele pensamento que havia tido na noite anterior, começou a se sentir muito mal e pensou que ia ter um ataque cardíaco de tão velozes eram as batidas de seu coração. 

          Acordou sem lembrar de como conseguira chegar até a cama, maldita droga, a Rebeca tinha razão quando disse que ela ainda iria acabar comigo, a droga não, a Rebeca. Saiu logo, muito assustado, porque lembrou que havia fotografado o gato e os mendigos com aquela máquina. Estava ficando louco, como isso podia ser possível. Deixa pra lá, no caminho telefonou para o fotografo velho e nada, só chamava. Que droga, quando a gente mais precisa as coisas nunca acontecem.

           Foi atrás do gato e dos mendigos, chegando naquela esquina não encontrou nada, após algum tempo encontrou um camelô que estava vendendo a sua mercadoria e perguntou pelos mendigos só para ficar mais tranquilo. A resposta dele gelou todo o seu sangue imediatamente, contou que alguém colocara fogo neles na madrugada passada e que não foi possível ajuda-los, pois não havia ninguém na rua àquela hora, agradeceu e ficou alguns momentos absorto. Após, deu alguns passos e se deparou com o gato, o mesmo gato do outro dia, estava em um canto do beco morto. Nem quis saber como acontecera, já sabia que ele de alguma maneira tinha sido o responsável, mas não queria pensar nisso agora, estava concentrado em chegar logo à loja do fotografo velho.

           Chegando lá estranhou a loja estar fechada, eram só três da tarde será que havia acontecido alguma coisa grave. Que piada, será que não bastava o seu desespero. Foi aí que uma mulher se aproximou e disse que o fotografo havia deixado um pacote para um rapaz que correspondia com a descrição de sua aparência, ele agradeceu a mulher e abriu logo a caixa, dentro estava a máquina e um bilhete breve, estava escrito: parabéns você conseguiu o que queria, agora você e um matador de instantes, após ele caiu e nunca mais se levantou, de maneira metafórica e claro.


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