terça-feira, 4 de outubro de 2016

CRÔNICA - Tiago Ribas

Hoje, lendo o escrito de um aluno, em que ele dizia da adrenalina que é estudar violino com o vizinho do ap de baixo dando socos no teto, lembrei das tantas janelas batidas com rancor quando eu começava meu estudo diário. Eu mal começava a afinar o violino e as janelas dos prédios vizinhos começavam a bater - e eram fechadas com tamanha violência que eu me intimidava a ponto de não conseguir relaxar e tocar com todo o som que eu poderia. Um dia, quando eu estava estudando corda solta, uma vizinha de baixo abriu a janela e gritou com toda a fúria: "que inferno essa flauta que não para nunca!!!" – o que me deixou momentaneamente inseguro quanto ao resultado do meu estudo. No entanto, nunca vi uma furadeira causar tanto incômodo, mesmo furando uma manhã toda. Por quê? Porque o cara da furadeira está trabalhando. Ah, bom. O mesmo aluno, ao passar com o estojo do violino na frente de uma fila de estudantes que esperavam o ônibus, ouviu este lisonjeiro comentário: “isso aí é a pior coisa que alguém pode fazer: ser músico”. Provavelmente essa pessoa foi depois no ônibus ouvindo música. O cara não gosta de músico, mas gosta de música. Afinal, alguém tem que fazer o trabalho sujo. Uma vez, de férias da faculdade, na minha cidade (eu estava no segundo ou terceiro semestre do curso de música na UFRGS), fui fazer exame médico pra piscina. Me atendeu uma médica tremendamente antipática e mal humorada. Mas quando ela viu minha pasta da UFRGS, subitamente ficou simpática, e perguntou, empolgada: “Você faz UFRGS?” “Sim, faço”, eu respondi também subitamente empolgado por tanto reconhecimento. “Que curso?” Quando eu respondi “música”, ela fez um sonoro “pfffffffff”. Por sinal, essa semana, uma médica, aqui em Pelotas, teve a capacidade de “convidar” a mim e meus alunos da orquestra para tocarmos – honrosamente e de graça! – na abertura do seu leilão de bovinos e eqüinos. O surpreendente é que ela parece não ter entendido o porquê de eu ter recusado e de ter dito que uma coisa dessas é um desrespeito à profissão do músico. Ela parece não ter entendido, porque, além de ter constrangedoramente continuado insistindo, acrescentou que a raça dos bois era Angus, uma das mais caras no mercado. (!) Casualmente, na mesma semana, aventou-se a possibilidade de excluir as artes do currículo do ensino médio... E, aproveitando o ensejo desse contexto tão favorável, um jornalista do jornal de maior circulação no estado aproveitou para escrever sua “opiniãozinha” de que arte na escola não serve pra nada, argumentando, cheio de razão: “afinal, não vi nenhum colega meu se revelar um Michelângelo”. Seu texto trazia o título: “arte pra quê?”. Logo abaixo, outro texto seu, abordando a questão das multas e educação no trânsito, com o título: “azuizinhos pra quê?” O interessante, fascinante até, é como essas pessoas desdenham daquilo sem o qual elas não vivem. A pessoa, por exemplo, acha o músico um coitado, mas deus a livre se no casamento dela não tiver um violinista – porque violinista no casamento é “chique”! Não é fascinante? O músico, que em si é praticamente um leproso quando está passando com seu instrumento rumo à faculdade de música (pffffff), se transforma num objeto de status quando “abrilhanta” (e as pessoas adoram esse termo) um evento. Mas isso não quer dizer que ele é respeitado nesse evento. Pelo contrário, quando um violinista toca do lado de uma porta de clube, enquanto os convidados passam por ele, ele é quase como a raça Angus. Afinal, como se respeita um músico? Prestando atenção à música. Porque o músico ama a MÚSICA mais que a si mesmo e, por isso, se sente desrespeitado na medida em que as pessoas desrespeitam a música. No entanto, até Joshua Bell foi ignorado quando, num experimento, tocou num metrô em Washington. Durante os 43 minutos em que tocou com seu Stradivarius 1713, ele arrecadou 32 dólares e apenas sete pessoas pararam para ouvi-lo (sem saber quem ele era, naturalmente). Pra encerrar com mais leveza, isso me lembrou uma história que Paganini adorava contar. Ele andava (incógnito) em Roma, quando viu uma menina tocando, sofrivelmente, violino na rua. Ele pediu para tocar e a menina deixou. Então começou a juntar gente, pois até que ele tocava bem. Quando ele parou, uma senhora disse: “Até que você toca bem”, ao que ele agradeceu. E ela acrescentou: “Claro, não chega a ser um Paganini”.

Nenhum comentário: