segunda-feira, 16 de março de 2015

Madame Bovary

Lilian Velleda

Dizem ser os temas da Literatura o amor, a morte, o poder. 
Tudo o mais seriam derivações dos três grandes, tratados com maior ou menor competência pelo escritor, conforme sua capacidade de articular formalmente a linguagem. 
E esta é a primeira grande virtude de Gustave Flaubert ao escrever – e reescrever -, durante cinco anos, a obra "Madame Bovary", cujo resumo pode ser assim anotado: menina cresce solitária, faz um casamento de conveniência e depois de algumas desventuras, encontra a morte pelo suicídio. 
Flaubert recorta a temática do adultério – banal, para dizer o mínimo -, e faz dela a sua grande obra (quem lembra de Salambô ou Memórias de Um Louco?). 
Mas acontece que Flaubert foi escritor comprometido até a raiz no ato de escrever, e para ele, o tema deveria desaparecer sob o estilo "que é toda uma maneira absoluta de ver as coisas".

Refletindo sobre a dificuldade do ato de criação, ele escreve a Louise Colet, no ano de 1852, dizendo "estar prestes a recopiar, corrigir e rasurar toda a primeira parte de Bovary. Os olhos medoem. Eu gostaria de ler com um só golpe de vista estas cento e cinqüenta e oito páginas e captá-las em todos os seus detalhes com um só pensamento" (...) "Que coisa desgraçada que é a prosa! Não termina nunca; tem-se que refazer sempre. Eu acredito no entanto que podemos dar-lhe a consistência do verso. Uma boa frase deve ser como um bom verso, imutável, tão ritmado quanto sonoro".  

Esse esforço do autor não aparece no texto, não o fratura, exatamente pela capacidade de articular o tema com e na linguagem.
Pois Madame Bovary permanece na comunidade leitora, a cada geração conquista outros e outras amantes. 
E minha amiga Verinha Garcia e eu fazemos parte desta comunidade que lê e ama Bovary. A personagem nos arrebata, em uma suave e afetuosa divergência.
Verinha deita o olhar apaixonado sobre Ema, nela vendo uma mulher que ousou desafiar convenções ao desejar outro homem, razão pela qual foi "morta" pelo autor, que se dobrou aos reclamos da sociedade. 
Ela a vê como heroína.
E é aqui que a paixão que nos une nos separa, pois para mim, Ema não ousou amar outro homem. Ema ama um estilo de vida diferente daquele que o casamento com Charles Bovary – um picolé de chuchu, é verdade -, proporciona. Precisamos penetrar o imaginário de Ema.
Flaubert nos conta que aos treze anos Ema foi para o convento e na solidão do claustro moldou suas expectativas sobre a vida. 
O capítulo 6 deixa entrever a formatação do universo mental de Ema, mediante leitura de romances açucarados, traficados para dentro do convento:

"Era só amores, amantes, damas perseguidas que desmaiavam em pavilhões solitários, postilhões assassinados nas estações de muda, cavalos rebentados em todas as páginas, florestas sombrias, perturbações do coração, juramentos, lágrimas e beijos, barquinhos ao luar, rouxinóis no arvoredo, cavaleiros bravos como leões e mansos como cordeiros " (...) 

O autor segue, ao nos contar:

"Quisera viver em algum velho solar, como aquelas castelãs de corpetes compridos que, sob os ornatos das ogivas, passavam os dias com o cotovelo apoiado ao peitoril e o queixo na mão, à espera de ver surgir no horizonte algum cavaleiro de pluma branca, cavalgando num cavalo preto".

Com essa formação, Ema se vê em um casamento arranjado pelo pai, e espera, na lua de mel, "frissom, frenesi, vertigem de amores copulados em noite de lua cheia". 
E Charles Bovary revela-se, ao longo da obra, medíocre e incapaz de perceber e atender as expectativas de Ema, que vê e interpreta tudo com as chaves que tem – as da literatura romântica, açucarada, a quem Flaubert dirige sua fúria (ele antecipa o Realismo).  Há desalinhamento e Ema, que por sua vez nega a Charles qualquer qualidade, passa a viver uma gangorra emocional nos seus encontros com o mundo:

Ema vai ao baile e se alegra, e aquilo é o que deseja para si: "A música do baile ressoava-lhe ainda nos ouvidos; fazia esforços para se conservar acordada, a fim de prolongar a ilusão daquela vida luxuosa, que em breve teria de abandonar". 
O casal muda para uma cidade maior – Yonville -, e ali, com certeza, será feliz. Outro homem a deixa alegre? Agora sim, será feliz. 
O marido, cirurgião, fará uma operação complexa, da qual poderá advir fama e fortuna e reconhecimento social? Ela crê, isso a fará feliz.
Porém, a cada vez a expectativa é atraiçoada e Ema mergulha no abismo que é a depressão. 
Desgraçada, aprisionada pela literatura romântica, Ema é incapaz de "amar o real como ele é", como vida que vale a pena ser vivida. 
Vitimada pelo idealismo que conforma o Ocidente, Ema é apaixonada pelo estilo de vida que não tem.  Ama não ama outro homem, ela ama a idéia do amor. E no desencontro com o mundo, se mata.
Atualizando o mito, o imaginário da maioria das nossas mulheres é hoje formatado pelas novelas de TV e a leitura de novelas compradas em bancas de revista.
Nelas, a promessa de que as Emas modernas serão sempre salvas pelo homem/herói. 
Mas como não se suicidam, são assassinadas, numa sociedade que não perdoa o desvio. Quanto ao final, minha amiga Verinha tem razão...

Nenhum comentário: