sexta-feira, 7 de maio de 2021

O PARALELEPÍPEDO E O ASFALTO - Luís Rubira

 


No ano de 2012, enquanto aguardava um atendimento numa instituição bancária, ouvi um cidadão dizer: “Pelotas ainda está na idade da pedra”. Não lembro se ele falava com outro interlocutor ou apenas falava alto, mas mostrava-se raivoso e argumentava que todo o calçamento deveria ser substituído pelo asfalto. Fiquei bastante espantado, sobretudo porque naquele ano a cidade comemorava os duzentos anos de seu surgimento, mas resolvi ignorar tais opiniões e silenciei. Afinal, como explicar em tão poucos minutos que ele estava iludido com a noção de progresso, que o paralelepípedo sempre representou uma espécie de vanguarda em termos de pavimentação urbana e que ele desrespeitava o esforço de muitas gerações?

De lá para cá, no entanto, testemunhei situações literalmente aterradoras. No primeiro loteamento da cidade, ao redor da Catedral Metropolitana, parte do calçamento em pedra regular foi coberto com asfalto visando unificar uma pista de ciclismo entre as ruas Félix da Cunha e XV de Novembro. Acaso naquele curto trecho não poderia ter sido mantido o paralelepípedo? O ciclista se importaria em diminuir a marcha e comtemplar com mais vagar a restauração da Catedral? Já no segundo loteamento, o que faz ainda aquele resto de asfalto que recobre o calçamento em pedra ao redor da Praça Cel. Pedro Osório, no trecho que vai do sobrado que abrigou o antigo quartel Farroupilha até o início da rua Marechal Floriano? E o que dizer da Rua XV de Novembro, cujo paralelepípedo regular, delicadamente polido pela ação do tempo, já havia sido soterrado na intersecção da rua Dom Pedro II e recentemente sofreu nova intervenção na Rua Gomes Carneiro?

Que diria de tudo isto o doutor João Chaves Campello, que em “1870 seguiu para Paris, onde frequentou a Escola de Medicina” e em seu retorno a Pelotas filiou-se ao Partido Liberal e “foi durante três quatriênios presidente da Câmara, sendo o iniciador do calçamento da cidade”? Por certo este “liberal militante e ardoroso”, que esteve à frente da Presidência do Rio Grande do Sul em 1879, o médico de alma pelotense que doou “à Bibliotheca Pública e a Câmara Municipal os terrenos em que atualmente estão situados” (Fernando Osório, A cidade de Pelotas, p. 177) ficaria estarrecido. O mesmo também ocorreria com o intendente Artur Antunes Maciel, que em 1887 assinou um contrato com uma empreiteira no qual havia artigos como: “empregar no calçamento somente pedras de excelente qualidade”; “conservar o calçamento feito” (Eduardo Arriada, “Uma história editorial”, Almanaque do Bicentenário de Pelotas, vol. 2).

É preciso lembrar que em cidades históricas europeias há um perfeito equilíbrio entre o calçamento em pedra e o asfalto. Em Paris, nas proximidades do Museu do Louvre, o que existe são paralelepípedos. Naquela cidade, o asfalto está presente, sendo usado em grandes artérias, como a Avenue de L’Opera, mas de resto vê-se, sobretudo em ruas menores, mosaicos em pedra. O mesmo ocorre em Roma, no entorno do Coliseu, onde há pavimentação em pedra. O asfalto também passa logo ao lado, na Via Celio Vibenna, mas em trechos dela vamos encontrar novamente a pedra. Prima-se nestas cidades pelos pedestres e pelos ciclistas, o mesmo ocorrendo em cidades brasileiras como Ouro Preto e Paraty. Para aqueles que duvidam de tudo isto, basta fazer um passeio virtual nos dias atuais pelo Google Earth.

Não vou comentar aqui o que está ocorrendo neste momento no Largo de Portugal e na Praça Rio Branco em frente à antiga Estação Férrea de Pelotas. Não há justificativa suficiente para dar conta de que novamente se recubra o paralelepípedo com novas camadas de pavimento em asfalto e concreto que nada tem a ver com o legado histórico de nossos antepassados. O esforço de todos aqueles que trabalharam com a pedra, este material tão duro e inerte, pode ainda hoje ser medido por meio do documentário “Graniteiros de Capão do Leão RS”, dirigido por Cátia Simone Castro Gabriel, disponível no youtube. Não, não é Pelotas que ainda está “na idade da pedra”. Quem dera fosse. O que está na “idade da pedra” são certas ideias antiquadas sobre progresso. As mesmas ideias contra às quais aquela moça jogou um paralelepípedo na França em maio de 1968. Gesto amplamente metafórico, registrado num cartaz com a frase: “La beauté est dans la rue” (a beleza está na rua).

Luís Rubira, Professor do Departamento de Filosofia da UFPel

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