sexta-feira, 3 de outubro de 2025

A GALINHA FUGIDIA - Enio Andrade


Eu tinha mais ou menos cerca de doze anos quando o fato aconteceu. Certa manhã minha mãe me chamou e disse que precisava que eu fosse até a casa da Lurdes. A Lurdes era uma amiga do tempo de sua juventude que tinha perdurado, talvez a única. Minha mãe tinha uma vida muito difícil e eu estava incluída, mesmo sem ter escolhido. Eram muitos irmãos, muita demanda.

O dia mal começava e já tínhamos que sair para dar conta de nossa sobrevivência. Naquele dia os “acontecimentos”, que era como chamávamos nossas dificuldades começaram cedo. O gás acabou um pouco depois das dez horas da manhã. Justo naquele dia em que minha mãe iria fazer um arroz com galinha. A galinha nos foi dada por um pai de santo amigo de minha mãe. Era uma sobra de um “trabalho” que lhe fora encomendado.

- vai lá na Lurdes e pede pra ela fazer uma comida.

Eu assenti com um gesto de baixar a cabeça. Minha mãe passou a mão em um balaio e botou a galinha ali dentro. Esqueci de mencionar que a galinha estava viva. Não era incomum que as pessoas matassem as galinhas em casa. Eu mesma já tinha visto muitas vezes minha mãe matar várias. Confesso que não era uma coisa boa de se ver. A pessoa pegava a galinha e começava a girar a bicha no ar até que o pescoço quebrava e pronto. Outras colocavam uma das mãos na base do pescoço da galinha enquanto colocavam a outra mão mais próxima à cabeça e puxavam as duas mãos ao mesmo tempo e em sentido contrário.

O balaio tinha duas tampas, minha mãe me advertiu para que não o abrisse.Fui andando na direção da casa da lurdes. A lurdes morava a cerca de dez quadras de nossa casa. Era ali no centro, bem pertinho. Fui andando distraída como era o meu costume, atenta a tudo que fosse curioso e desatenta com o restante. Ao chegar à rua almirante

barroso parei porque era uma rua muito movimentada e minha mãe sempre dizia para tomar cuidado.

Minha mãe não precisava nem sair de casa para tomar conta de mim, estava em minha cabeça como uma espécie de consciência. Sempre dizendo, faça isso, faça aquilo, com aquela sutileza de locomotiva, que ela não me ouça. Ao parar para olhar para os dois lados tive a curiosidade de conferir se estava tudo bem com a galinha.

Mal abri a tampa do balaio e a galinha num gesto abrupto a empurrou com a cabeça e saltou para a liberdade. A galinha devia estar com muito medo porque só o desespero nos faz tão corajosos, mas o que estou dizendo? Passado aquele primeiro momento de surpresa comecei a me desesperar, e agora? Minha mãe vai me matar.

Precisava fazer alguma coisa. Não conseguia pensar direito, a imagem de minha mãe ouvindo sobre a perda da galinha povoava a minha cabeça de uma tal maneira que sobrava pouco espaço para uma reação. Enquanto eu me debatia em lamentações a galinha já tinha atravessado a rua movimentada e estava parada bicando o chão em busca de algo para comer, pensava eu.

A imagem da galinha ali parada recobrou em mim alguma esperança, quem sabe eu a pudesse recuperar e apagar de minha mente aquelas cenas horríveis em que minha mãe me tirava o couro. Decidi ir atrás da galinha, atravessei a rua resoluta e com uma determinação que não julgava possuir, devia ser algum arroubo de coragem apreendido por mim de algum personagem daquelas fotonovelas intermináveis que eu lia com tanto gosto em um dos poucos intervalos que aquela vida miserável me permitia.

A galinha continuava lá impassível, parada ali como se quisesse me desafiar. A liberdade daquela galinha era como uma afronta dentro da minha forma de pensar naquele instante. Fui me aproximando devagar como quem tem uma estratégia definida. Quando cheguei perto o suficiente para dar o bote a galinha deu um salto e iniciou uma corrida entre os carros que estavam estacionados.

Depois que eu me cansei ela parou e ficou escondida embaixo do carro junto a uma roda. Fiquei parada e enquanto descansava um pouco pensei que aquele jogo de

gato e rato poderia durar horas e comecei a me desesperar. Agora só um milagre poderia me salvar. Foi aí que apareceu aquele anjo em minha vida. Não sei de onde vinha, pouco me importava, têm horas que só precisamos que as coisas aconteçam, não precisamos de explicação e nem significados.

O homem parou e sorriu para mim. Perguntou o que uma menina fazia ali espiando embaixo de um carro. Contei tudo a ele da forma mais resumida que consegui. Ele pediu que contasse de novo porque eu estava tão ansiosa para resolver aquilo tudo que atropelei as palavras e engoli sílabas. Voltei a contar tudo com mais calma e ele entendeu. Mal terminei e o homem se abaixou e deu uma boa olhada na galinha. Chegou perto de mim e quase cochichou no meu ouvido.

A estratégia era simples, enquanto eu atacava por um lado ele esperava do outro e procurava num só gesto conseguir êxito. Toda aquela confusão terminou de uma forma repentina. O homem capturou a galinha de uma forma tão eficaz que aquilo ficou cristalizado em minha memória, jamais esqueci. Depois de agradecer ao homem me dirigi à casa da lurdes e esperei que a galinha cumprisse seu destino. É claro que minha mãe nunca soube do acontecido.

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