A história dos direitos humanos é um processo complexo e difícil de conquistas. Cada avanço foi derivado de muitas lutas, conflitos e opressão. Portanto, quando chegamos no dia 10 de dezembro de 2018 aos 70 anos da Declaração de Direitos Humanos das Nações Unidos, é importante relatar, mesmo que de forma sintética, como isto ocorreu.
O historiador britânico Edward Palmer Thompson, costuma classificar trajetória de “conquista” dos direitos humanos pelos cidadãos e cidadãs em três grandes ciclos: o primeiro no século XVIII, por meio das Declarações de Direitos Liberais ocorreu a conquista dos direitos civis, no século XIX os direitos políticos por meio do início do direito a voto pelas classes trabalhadoras e no século XX, os direitos sociais. Hoje estaríamos vivenciando a conquista da quarta geração de direitos, a qual inclui os transgeracionais e transindividuais, como o direito meio ambiente saudável, os direitos de proteção dos consumidores, etc.
Outra classificação que se tornou clássica é a do jurista Karel Vasak, de 1979, que utiliza os lemas da revolução francesa para ordenar a gerações em direitos em de liberdade (civis e políticos), de igualdade (sociais) e de fraternidade (coletivos transindividuais).
De qualquer forma, independente da classificação das gerações, é preciso reconhecer que não estamos diante de um processo linear, onde direitos foram transmitidos de forma igual para todas as pessoas. Por exemplo, em 1689 a Bill of Rights garantiu a livre eleição dos membros do Parlamento Britânico, mas apenas para um grupo limitado. Resultado da Revolução Glorioso, esta noma também garantiu direitos à elite agrária do país, limitando a tributação à aprovação do Parlamento e garantindo o direito de petição. A restrição às prisões e privações sem julgamento é ainda mais antiga, da Magna Carta, de 1215. Mas a classe operária somente conquistou o direito ao voto em 1918, depois da Primeira Guerra Mundial, mesma época em que o direito foi estendido às mulheres com mais de 30 anos. Voto universal para todos os adultos, só em 1928. Aliás, o voto universal era uma das reivindicações do Manifesto do Partido Comunista de 1848.
A Declaração de Direitos de Virgínia de 1776, garantia a liberdade a todos os cidadãos e cidadãs norte-americanos, mas os negros alcançaram a liberdade nos Estados do Sul em 1863, mesmo assim, isto gerou uma guerra civil no país (1861-1865). Quanto aos votos, os homens brancos puderam exercê-lo desde a Revolução. Os negros tiveram este direito formalmente reconhecido em 1870, mas muitos estados do sul boquearam tal exercício até o final da década de 1960, o que foi derrotado graças ao movimento pelos direitos civis liderado por Martin Luther King. As mulheres conquistaram o direito ao voto nos EUA em 1920, graças à luta das sufragistas, e os povos indígenas somente em 1924.
O Brasil, embora reconhecesse o direito à liberdade desde a primeira Constituição, em 1824, somente aboliu formalmente a escravatura em 1888, sendo o último país do mundo a dar fim à escravidão. Já o direito ao voto foi uma conquista masculina em 1891, pois até tal data, o voto era censitário. As mulheres, apenas em 1934. Mas o voto universal, sem distinção, como elemento básico para o exercício pleno da cidadania, é uma conquista bem mais recente, previsto apenas na atual Constituição, de 1988 (antes os analfabetos ou 1/3 da população adulta à época, não podiam votar).
A título de exemplo, o México garantiu o direito ao voto para as mulheres em 1947, o Peru em 1955, a Suíça em 1971, na França, terra da Revolução, em 1944 e a Índia, graças à Revolução pela Independência liderada por Gandhi, o voto universal em 1950. Finlândia (1906), Rússia (1917) e Polônia (1918), são exemplos de países que garantiram o voto universal de uma única vez e de foma igualitária.
É óbvio que na esteira do exercício dos direitos civis e políticos outros foram conquistados, como a limitação da jornada de trabalho, o direito à saúde, à educação pública, laica e universal, ao meio ambiente equilibrado, à aposentadoria ou proteção contra doenças e velhice, a proteção da infância, todos direitos consagrados na Declaração de Direitos de 1948.
Um dos aspectos que deve ser ressaltado em relação ao documento da ONU é a sua relevância enquanto marco civilizatório. O mundo tinha acabado de sair do “holocausto nazista”, sendo necessária uma resposta que permitisse uma precaução quanto a tragédias semelhantes e os avanços para a construção de uma sociedade mais equilibrada e justa.
Ao longo dos seus 70 anos a Declaração de 1948 sobreviveu aos crimes do colonialismo europeu, ajudou a superar o apartheid na África do Sul, a enfrentar desrespeito aos direitos civis de negros, mulheres e indígenas nas Américas, às inúmeras guerras civis, à “guerra fria”, aos genocídios nos Bálcãs e em Ruanda, às ditaduras militares na América Latina e na África, sempre servindo como base instrumental para orientar as ações de paz e a defesa da dignidade humana. Entretanto, nunca esteve tão ameaçada.
A principal ameaça à Declaração de 10 de dezembro é o renascimento do fascismo em várias partes do mundo, notadamente em lugares como Estados Unidos, Brasil, Itália, Reino Unido (Brexit) e Hungria, para citar o exemplo de países que elegeram Chefes de Estado ou de Governo descomprometidos com os direitos humanos e, ao contrário, vendo a defesa destes direitos como uma barreira aos seus projetos autoritários. Também observa-se o protofascismo nas ruas de países como França, Espanha, Argentina, Alemanha e Grécia. O movimento Gilles Janout, na França, ainda não tem um rumo, mas teme-se que o mesmo despenque para o fascismo.
Há uma diferença essencial entre as lutas éticas, religiosas ou políticas travadas até hoje com aquilo que representa o fascismo. Este é a negação da própria essência dos direitos humanos e, até mesmo, daquilo que podemos chamar de humano: uma pessoa com dignidade, que respeita as diferenças e demonstra atitude de convivência em um mundo com modelos teóricos, intelectuais, culturais, religiosos e ideológicos diversos. O fascismo trava uma verdadeira “guerra de aniquilação” contra a diferença. Os adversários são vistos como inimigos, a ciência e a cultura também são atacadas sistematicamente. Livros e narrativas construídas ao longo da história devem ser mudados. O fascismo é anti-histórico, anti-intelectual, vazio programaticamente e alienado em sentido estrito. Se alimenta do ódio, dos preconceitos, de mentiras, de fórmulas pré-formadas e de “mitos fabricados”. Nestas condições, considerando as ameaças norte-americanas de retomada da pesquisa nuclear militar e do futuro governo brasileiro de abandonar a agenda de enfrentamento das mudanças climáticas, o risco de novos holocaustos, inclusive ambientais, é muito grande. Hoje é impossível afirmar com algum grau de certeza se teremos a oportunidades de comemorar muitos aniversários da Declaração das Nações Unidas de 1948. Mais do que nunca, os direitos humanos são pautas de luta e de resistência.
(*) Sandro Miranda
Advogado no Rio Grande do Sul, especialista em política, mestre em ciências sociais pela Universidade Federal de Pelotas. Tem atuação no estudo, análise e elaboração de políticas públicas, no planejamento administrativo, nas áreas do direito ambiental e do urbanístico, e como cronista.
FONTE: Sustentabilidade e Democracia, contribuindo para um mundo mais justo
O historiador britânico Edward Palmer Thompson, costuma classificar trajetória de “conquista” dos direitos humanos pelos cidadãos e cidadãs em três grandes ciclos: o primeiro no século XVIII, por meio das Declarações de Direitos Liberais ocorreu a conquista dos direitos civis, no século XIX os direitos políticos por meio do início do direito a voto pelas classes trabalhadoras e no século XX, os direitos sociais. Hoje estaríamos vivenciando a conquista da quarta geração de direitos, a qual inclui os transgeracionais e transindividuais, como o direito meio ambiente saudável, os direitos de proteção dos consumidores, etc.
Outra classificação que se tornou clássica é a do jurista Karel Vasak, de 1979, que utiliza os lemas da revolução francesa para ordenar a gerações em direitos em de liberdade (civis e políticos), de igualdade (sociais) e de fraternidade (coletivos transindividuais).
De qualquer forma, independente da classificação das gerações, é preciso reconhecer que não estamos diante de um processo linear, onde direitos foram transmitidos de forma igual para todas as pessoas. Por exemplo, em 1689 a Bill of Rights garantiu a livre eleição dos membros do Parlamento Britânico, mas apenas para um grupo limitado. Resultado da Revolução Glorioso, esta noma também garantiu direitos à elite agrária do país, limitando a tributação à aprovação do Parlamento e garantindo o direito de petição. A restrição às prisões e privações sem julgamento é ainda mais antiga, da Magna Carta, de 1215. Mas a classe operária somente conquistou o direito ao voto em 1918, depois da Primeira Guerra Mundial, mesma época em que o direito foi estendido às mulheres com mais de 30 anos. Voto universal para todos os adultos, só em 1928. Aliás, o voto universal era uma das reivindicações do Manifesto do Partido Comunista de 1848.
A Declaração de Direitos de Virgínia de 1776, garantia a liberdade a todos os cidadãos e cidadãs norte-americanos, mas os negros alcançaram a liberdade nos Estados do Sul em 1863, mesmo assim, isto gerou uma guerra civil no país (1861-1865). Quanto aos votos, os homens brancos puderam exercê-lo desde a Revolução. Os negros tiveram este direito formalmente reconhecido em 1870, mas muitos estados do sul boquearam tal exercício até o final da década de 1960, o que foi derrotado graças ao movimento pelos direitos civis liderado por Martin Luther King. As mulheres conquistaram o direito ao voto nos EUA em 1920, graças à luta das sufragistas, e os povos indígenas somente em 1924.
O Brasil, embora reconhecesse o direito à liberdade desde a primeira Constituição, em 1824, somente aboliu formalmente a escravatura em 1888, sendo o último país do mundo a dar fim à escravidão. Já o direito ao voto foi uma conquista masculina em 1891, pois até tal data, o voto era censitário. As mulheres, apenas em 1934. Mas o voto universal, sem distinção, como elemento básico para o exercício pleno da cidadania, é uma conquista bem mais recente, previsto apenas na atual Constituição, de 1988 (antes os analfabetos ou 1/3 da população adulta à época, não podiam votar).
A título de exemplo, o México garantiu o direito ao voto para as mulheres em 1947, o Peru em 1955, a Suíça em 1971, na França, terra da Revolução, em 1944 e a Índia, graças à Revolução pela Independência liderada por Gandhi, o voto universal em 1950. Finlândia (1906), Rússia (1917) e Polônia (1918), são exemplos de países que garantiram o voto universal de uma única vez e de foma igualitária.
É óbvio que na esteira do exercício dos direitos civis e políticos outros foram conquistados, como a limitação da jornada de trabalho, o direito à saúde, à educação pública, laica e universal, ao meio ambiente equilibrado, à aposentadoria ou proteção contra doenças e velhice, a proteção da infância, todos direitos consagrados na Declaração de Direitos de 1948.
Um dos aspectos que deve ser ressaltado em relação ao documento da ONU é a sua relevância enquanto marco civilizatório. O mundo tinha acabado de sair do “holocausto nazista”, sendo necessária uma resposta que permitisse uma precaução quanto a tragédias semelhantes e os avanços para a construção de uma sociedade mais equilibrada e justa.
Ao longo dos seus 70 anos a Declaração de 1948 sobreviveu aos crimes do colonialismo europeu, ajudou a superar o apartheid na África do Sul, a enfrentar desrespeito aos direitos civis de negros, mulheres e indígenas nas Américas, às inúmeras guerras civis, à “guerra fria”, aos genocídios nos Bálcãs e em Ruanda, às ditaduras militares na América Latina e na África, sempre servindo como base instrumental para orientar as ações de paz e a defesa da dignidade humana. Entretanto, nunca esteve tão ameaçada.
A principal ameaça à Declaração de 10 de dezembro é o renascimento do fascismo em várias partes do mundo, notadamente em lugares como Estados Unidos, Brasil, Itália, Reino Unido (Brexit) e Hungria, para citar o exemplo de países que elegeram Chefes de Estado ou de Governo descomprometidos com os direitos humanos e, ao contrário, vendo a defesa destes direitos como uma barreira aos seus projetos autoritários. Também observa-se o protofascismo nas ruas de países como França, Espanha, Argentina, Alemanha e Grécia. O movimento Gilles Janout, na França, ainda não tem um rumo, mas teme-se que o mesmo despenque para o fascismo.
Há uma diferença essencial entre as lutas éticas, religiosas ou políticas travadas até hoje com aquilo que representa o fascismo. Este é a negação da própria essência dos direitos humanos e, até mesmo, daquilo que podemos chamar de humano: uma pessoa com dignidade, que respeita as diferenças e demonstra atitude de convivência em um mundo com modelos teóricos, intelectuais, culturais, religiosos e ideológicos diversos. O fascismo trava uma verdadeira “guerra de aniquilação” contra a diferença. Os adversários são vistos como inimigos, a ciência e a cultura também são atacadas sistematicamente. Livros e narrativas construídas ao longo da história devem ser mudados. O fascismo é anti-histórico, anti-intelectual, vazio programaticamente e alienado em sentido estrito. Se alimenta do ódio, dos preconceitos, de mentiras, de fórmulas pré-formadas e de “mitos fabricados”. Nestas condições, considerando as ameaças norte-americanas de retomada da pesquisa nuclear militar e do futuro governo brasileiro de abandonar a agenda de enfrentamento das mudanças climáticas, o risco de novos holocaustos, inclusive ambientais, é muito grande. Hoje é impossível afirmar com algum grau de certeza se teremos a oportunidades de comemorar muitos aniversários da Declaração das Nações Unidas de 1948. Mais do que nunca, os direitos humanos são pautas de luta e de resistência.
(*) Sandro Miranda
Advogado no Rio Grande do Sul, especialista em política, mestre em ciências sociais pela Universidade Federal de Pelotas. Tem atuação no estudo, análise e elaboração de políticas públicas, no planejamento administrativo, nas áreas do direito ambiental e do urbanístico, e como cronista.
FONTE: Sustentabilidade e Democracia, contribuindo para um mundo mais justo
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