quarta-feira, 4 de maio de 2022

PARANOIA - Enio Andrade


         A noite tinha sido ótima, era a primeira vez que eu tocava naquela casa. Mesmo cansada, estava me sentindo muito bem. Pode parecer clichê dizer isso,  mas, me sentia como alguém que cumpriu uma espécie de missão. Fui saindo da festa recém terminada, o pessoal que trabalhou estava no final do serviço, cada um pensando em ir para sua casa descansar. A boate ficava ali no centro, na volta da praça, como dizemos por aqui, próxima ao mercado. Já tinha ligado para a Aparecida, combinamos que ela me levaria para casa, era uma tradição nossa, gostávamos de ir para casa conversando sobre a festa e de como nos sentíamos sobre nós e tudo o que nos cercava.
           Naquela noite ela não pudera vir à festa porque estava estudando, tinha uma prova importante na segunda, mesmo assim combinamos que no final da noite nos encontraríamos. O telefone tinha tocado algumas vezes e nada de ela atender, deixei uma mensagem e nem esquentei, vai ver ela dormiu ou algo assim. Olhei para cima e percebi que já começava a amanhecer. Ali no centro à essa hora tem bastante movimento. Pensei que não teria perigo nenhum se eu fosse caminhando até minha casa, afinal de contas moro pertinho do centro, umas dez quadras, se tanto. Nem seria preciso dizer que pensei que poderia ser perigoso, claro né, sendo mulher nunca se tem essa sensação de segurança absoluta.
           Nessas todas já tinha caminhado duas quadras, uma na rua XV de novembro e outra na rua Tiradentes, me aproximava do prédio dos correios na esquina da Félix da cunha. Foi quando percebi que uma espécie de neblina começou a baixar e me cercou de tal maneira que num primeiro momento não conseguia enxergar nada. Aos poucos foi melhorando e eu conseguia divisar cerca de vinte metros a minha frente, foi quando eu a avistei. Que bom pensei, uma mulher ia a cerca de uns dez metros de distância. Poxa que bom, o natural seria me aproximar e irmos juntas até quando fosse possível e necessário, dada à situação. Não sei porque não a chamei, acho que foi uma coisa de intuição.
          Em seguida a tal mulher olhou para trás pela primeira vez. Me deu a sensação de que ela começou a acelerar o passo. Parecia a mim que a tal mulher procurava disfarçar uma preocupação que começava a sentir, como se não quisesse que a outra parte percebesse que fora descoberta. Não se passou nem um minuto e a mulher olhou para trás outra vez, dessa vez não se preocupou em disfarçar, acelerou o passo com desfaçatez.
          Foi aí que comecei a me preocupar de verdade. Mas, o que essa mulher está vendo que eu não consigo enxergar. Olhei para trás e não via nada, aquela neblina parecia ser cúmplice de quem quer que estivesse produzindo aquela súbita desconfiança. Agora que a mulher não precisava mais disfarçar começou a olhar para trás a cada dez segundos, era o que eu pensava, afinal de contas quem prestaria atenção em alguma coisa naquela situação. Depois desse momento parece que não existia mais nada no mundo, éramos só eu, a mulher, a neblina e a tal “aparição”.
          A mulher acelerou tanto o passo que já parecia a mim que ela corria. Comecei a sentir um medo tão grande que também acelerei o passo, minha intenção era me aproximar da mulher o suficiente para que ficássemos juntas na hora derradeira. Meu sentimento era de derrota, mas, também era de empatia, queria que estivéssemos juntas naquela situação que já parecia irremediável. Fiquei me culpando, se eu não fosse tão teimosa, para que eu fui me expor a tamanho perigo.
          Agora a situação parecia fora de controle, a mulher corria sem olhar para trás, parecia que começava a gritar, digo que parecia porque eu não conseguia mais raciocinar, tal era o medo que estava sentindo. Meu coração desandou a bater descompassado, minha cabeça latejava, não sabia como minhas pernas estavam aguentando tudo aquilo. Foi quando eu parei de correr, não sei o porquê, era uma coisa estúpida a fazer, naquela situação desesperadora. De repente estaquei e disse quase gritando, peraí !!
          Neste instante tudo se esclareceu, a neblina se desvaneceu e pude enxergar a mulher correndo, já ia longe, ouvi uma buzina. Era a Aparecida que dizia com um sorriso, desculpe, cochilei. O carro andou um pouco e ao passarmos pela mulher pedi à Aparecida que parasse por um momento, olhei para a mulher e dei um tchauzinho irônico, afinal nós duas sabíamos o que havia acontecido. Depois contei tudo à Aparecida e nos rimos daquela estória, até hoje.

ENIO ANDRADE é um consistente escritor pelotense 
se destacando como romancista que surge no cenário literário.
Recentemente lançou o romance "Dandara e a Princesa" a respeito do qual já comentamos em  A METADE SUL .
Acesse o link para ler 

 

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