Tramita na Câmara dos Deputados o PL – Projeto de Lei nº 3.729/2004, agora denominado Lei Geral do Licenciamento Ambiental, cujas discussões são feitas no âmbito de um GT – Grupo de Trabalho sob a coordenação do deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP). A ideia é simplificar o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos dos mais diversos: ferrovias, gasodutos, hidrelétricas, indústrias, loteamentos urbanos, mineradoras, rodovias, usinas de álcool e açúcar e tantos outros. O assunto é complexo e do interesse de toda a população brasileira, e tem chamado à atenção de associações científicas, empresas privadas, grupos políticos, movimentos étnicos e sociais, órgãos do governo etc.
O licenciamento ambiental é um instrumento legal ligado à gestão da Política Nacional de Meio Ambiente. Está diretamente associado ao planejamento, controle prévio e acompanhamento de atividades humanas que interferem no meio ambiente e na vida das pessoas. Isso é feito à luz da ideia de desenvolvimento sustentável e costuma ser norteado pela legislação nacional e por TRs – Termos de Referência, isto é, por documentos oficiais que norteiam estudos científicos realizados para esta finalidade, comumente apresentados nos EIAs – Estudos de Impacto Ambiental.
No caso da proposta de Lei Geral do Licenciamento Ambiental, nota-se várias incongruências no que refere ao patrimônio arqueológico nacional, aqui entendido como um conjunto de bens da União de grande relevância à compreensão da formação da sociedade brasileira e, consequentemente, ao direito à memória e à construção de nossa identidade enquanto povo e nação soberana. Quem não sabe de onde veio e quem é, por certo terá dificuldades em saber para onde deve ir e com quem deve caminhar ao lado na estrada da vida em sociedade. Daí compreender a importância do patrimônio arqueológico para um projeto de nação plural, livre, soberana, inclusiva, desenvolvida e sustentável. Por razões desta natureza é que os bens arqueológicos, todos eles, são considerados bens da União, conforme assegura a Carta Constitucional de 1988 e a Lei n. 3.924/1961, dentre outros dispositivos legais.
Neste contexto, arqueólogos costumam trazer à tona histórias e culturas que a sociedade sequer sabia de sua existência. Apresentam-se como guardiões do patrimônio cultural material, onde quer que esteja, na superfície dos terrenos, enterrados no subsolo ou submerso nas águas. Faça chuva, sol, frio ou calor, estão lá, em campo ou nos laboratórios e gabinetes, realizando trabalhos importantes para o país, em grande parte voltados para o licenciamento ambiental de obras de engenharia.
Ao analisar o assunto em tela, verifica-se que o texto da propositura possui inconsistências sob forma de “pegadinhas”, especialmente no que se diz respeito à interpretação da legislação relativa à proteção do patrimônio arqueológico. Caso aprovada da maneira como consta apresentada no momento, gerará insegurança jurídica e causará prejuízos dos mais diversos a governos, empreendedores, trabalhadores e população em geral. Seu maior risco de impacto sobre o patrimônio arqueológico está ligado à destruição de sítios arqueológicos, isto é, à aniquilação um importantíssimo legado cultural não renovável de centenas gerações anteriores às gerações atuais e futuras. Esta avaliação pode ser explicada a partir de três questões centrais, apresentadas na sequência.
Primeira, na proposta não há menção explícita ao IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão federal criado pela Lei nº 378/1937. Desde os anos 1960, sobretudo, o IPHAN tem cumprido relevante papel no que se refere ao conhecimento, proteção, gestão e valorização do patrimônio arqueológico. A ausência de referência formal ao órgão ocasionará insegurança jurídica, incompreensões, incongruências, judicializações e conflitos sobre o papel de órgãos públicos municipais, estaduais e federais no processo de licenciamento ambiental.
Segunda, a propositura restringe o licenciamento ambiental a bens arqueológicos acautelados previamente identificados e registrados junto ao IPHAN, algo que está fragrantemente em desacordo com a Lei nº 3.924/1961, pois a legislação nacional acautela ou protege juridicamente todo o patrimônio arqueológico nacional, qualquer que seja, sendo ou não conhecido no momento da elaboração dos EIAs.
Terceira, no caso de bens arqueológicos existentes em terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas e comunidades tradicionais, a Lei Geral do Licenciamento Ambiental também é inconsistente e contraditória. Ocorre que projeto limita a consulta prévia, livre e informada a esses coletivos, assegurada pela Convenção nº 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, ratificada no Brasil pelo Decreto nº 5.051/2004, às terras homologadas. Ora, no caso do processo de regularização de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas e quilombolas, sabe-se que o mesmo não está limitado à homologação, mas pressupõe, por exemplo, estudos científicos para fins de identificação e delimitação das áreas. Para não incorrer em ilegalidade, o PL deve assegurar esta consulta a todas as populações originárias e tradicionais afetadas direta e indiretamente pelos empreendimentos.
Nota-se, portanto, que a ideia de simplificar o licenciamento ambiental poderá ter efeito contrário, quer dizer, tornará ainda mais moroso, litigioso, oneroso e danoso todo esse processo. Por isso, o Congresso Nacional precisa ouvir movimentos étnicos e sociais, especialistas e entidades das mais diversas que possuem expertise e interesse no tema. Caso isso não ocorra à altura, a Lei Geral do Licenciamento Ambiental será mais um retrocesso na história recente do país e atentará contra o próprio Estado Democrático de Direito. Definitivamente, instituições do Estado, empresas públicas e privadas e a população em geral precisam entender que o licenciamento ambiental não é entrave para o progresso material da nação, pelo contrário. O problema não está, necessariamente, nas leis, mas nas instituições e agentes responsáveis pelo seu cumprimento. As recentes tragédias de Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019, ocorridas em Minas Gerais, são exemplos do que se está a falar. Isso já bastaria para o devido aprendizado pela dor, mas às vezes parece que não. Significa dizer que a legislação ambiental pode e deve ser aperfeiçoada, mas jamais vilipendiada.
Jorge Eremites de Oliveira - Doutor em História/Arqueologia pela PUCRS – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professor da UFPel – Universidade Federal de Pelotas e presidente da SAB – Sociedade de Arqueologia Brasileira.
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