Mássimo se considerava um escritor. Herdara da mãe, que nunca conheceu, a predileção por poetas russos, o alcoolismo e a tragédia literária. Aquela que lhe dava o amargo privilégio de nunca conseguir publicar nada do que escrevia.
Não que não tentasse, mas diante de tanto sucesso em ser ignorado, resignou-se à sua condição de serviçal na Prefeitura, que lhe garantia o aluguel de uma água-furtada numa viela pouco iluminada numa rua antiga no centro da cidade, e o que comer, mesmo modestamente.
Ele tinha uma companheira, que ninguém jamais viu, que só aparecia à noite depois das 22 horas. Era rotineiro e infalível: Todas as noites, exatamente às 22 horas, ele diminuía a luz do abajur e fechava qualquer livro que estivesse lendo. Ao cabo de alguns segundos, sua atenção era atraída para um roçar de chave na fechadura da porta de entrada, o girar do mecanismo da fechadura, o girar da maçaneta e o ranger das dobradiças antigas da porta de madeira pesada.
Sem cerimônia, ela entrava, sorria para ele e, sem dizer nada, jogava o casaco e a bolsa na cadeira vitoriana ao lado do cabideiro e entrava na cozinha. Após algum bater de panela, um ou outro riscar de fósforo na cartela e o cheiro agradável, o café estava passado. Ela levava uma caneca para ele, que gostava forte e sem açúcar. Ficava bebericando.
Para Mássimo, ela era Maddie. Ele também a chamava secretamente e para si, quando conversava em monólogo, de Maddiemá.
Ela mudava constantemente. Alguns dias aparecia relaxada, suja e descuidada, falando palavras desbocadas e impacientes. Outras vezes, como dessa vez, aparecia alinhada, elegante e com gestos contidos. Ele desistiu de descobrir o porquê disso. Talvez ela avaliasse o ambiente, quem sabe?
Ele não se importava, porque a presença dela sempre o transportava a uma melancolia onde residia a sua arte. Com Maddiemá, a mente de Mássimo se abria e mundos eram criados. As palavras dançavam formando frases, às quais ele transpunha magnificamente para um papel.
Uma vez um professor de literatura que Mássimo conheceu no banheiro de um bar, vomitando a vodka que havia passado da cota, disse-lhe a verdade sobre o mercado de publicações e o sucesso literário. “Máximo, meu caro… o que você escreve é tragicamente belo. Mas isso não vende. As pessoas não gostam de comprar tristeza. Já são tristes por conta própria. Veja o que vende: livros de autoajuda cheios de clichês e romances adolescentes. Uma coisa ou outra de mundos mágicos. E só.”
Voltando de seu devaneio, Mássimo viu que Maddiemá estava sentada ao lado da cama dele e sorvendo seu café, esperando que ele adormecesse. Ela nunca permitiria que ele a tocasse se ele tentasse, mas ele nunca tentou. Mássimo limitava-se a sentir a presença dela, em meio a fumaça que saía de sua caneca de louça com café quente. Via a silhueta da mulher um pouco acima do peso, mas para ele incrivelmente sedutora.
Às vezes, ela ficava com ele até amanhecer e o acompanhava ao trabalho. Outras vezes, ao abrir os olhos assustados ao som do velho despertador movido a corda, sentia a sua solidão palpável. Então, nesses momentos, sob a embriaguez do perfume de Maddiemá, ele escrevia.
Ela o fazia sentir uma melancolia desavergonhada, um entrar dentro de si mesmo até as entranhas, onde morava seu amor próprio e seu espírito. Tomava conta de tudo que havia nele, desde os minutos do café, até os anos do seu meio século. Ele não lembra exatamente quando ela apareceu pela primeira vez. Sabe apenas que, até onde alcança sua memória, ela está lá. Às vezes desafiadora demais, às vezes crítica demais, jamais carinhosa, exceto pelo café que ela compartilhava com ele.
Ele tentou mandá-la embora, mas sempre acabava chamando-a de volta. Ela não era uma ressentida, ele pode descobrir, pois ela sempre voltava como se nada tivesse acontecido. Mássimo não sabia se ela tinha outros homens e nem queria saber. Achava-se dono dela por direito de antiguidade, só para massagear seu ego, porque no fundo ele sabia que Maddiemá não era mulher de ter donos.
Pois bem.
Consta que ultimamente, Mássimo tem faltado ao trabalho, ao ponto de obrigar seu superior a ir procurá-lo. O homem não o encontrou em nenhum lugar. Na porta do pequeno apartamento havia correspondência entulhada, na maioria contas a pagar e só. Dado ao insucesso da busca e expirado o prazo legal, Mássimo foi demitido por justa causa por abandono de emprego. As verbas rescisórias foram depositadas em juízo, pois não havia a quem as atribuir.
O tempo passou e toda a marca da passagem de Mássimo pela terra foi apagada. Ninguém mais se recordava dele. O que não se sabe e, a título de curiosidade, eu relato, é que no dia seguinte à noite em que o escritor frustrado desapareceu, dois garotos que caçavam passarinhos encontraram sob a ponte do rio que circunda a cidade, roupas de homem, perfeitamente dobradas em cima dos sapatos de verniz gastos, ao lado de uma pilha de papéis queimados, e que, no outro lado da cidade, um homem solitário esperaria, às 22 horas, o som de uma fechadura sendo aberta.
(*) Social Democrata, fotógrafo,escritor, judoca e aikidoca, mas pago minhas contas consertando carros.
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