Política é encenação. Para usar um termo não-moralista: é construção de narrativa. Por que Lula pode fazer ajustes “de direita” na economia, quando assumiu o primeiro governo, no início de 2003? Porque meramente sua vitória já era uma entrega simbólica enorme. Na verdade ele tinha a “licença para governar” à direita que o próprio PSDB não teria. Tomaria porrada dos movimentos, sindicatos etc.
Desse ponto de vista, a vitória de Lula (e seu pragmatismo econômico) foi uma sorte para o país. Por outro lado, assim que teve uns trunfozinhos econômicos na mão, Lula os reinvestiu em políticas de inclusão. Esse timing, combinado com alguma sorte no cenário internacional, foi cacife suficiente para Lula contornar contra-narrativas cruéis – como a exposição do mensalão –, e ser reeleito.
Não é que as pessoas não enxergassem os defeitos de Lula e de seu governo. É que no pacote, tal como era percebido, o país como um todo (e não sua elite excludente) parecia levar vantagem. Claro que a elite preservava e até ampliava algumas vantagens, como o setor bancário por exemplo, que bateu seguidamente recordes de lucro. Assim, calibrando a narrativa, Lula seguiu agradando à direita e à esquerda.
Lula é um intuitivo. Quando colocou Gilberto Gil no Ministério, por exemplo, poderia estar cometendo um erro de natureza populista similar ao de Fernando Henrique, que colocou Pelé à frente do Ministério Extraordinário dos Esportes em 1995, como se “celebridade” na área pudesse se transformar automaticamente em algum tipo de autoridade ou competência.
Porém Gil, sucedido por Juca Ferreira, não só trouxe um tipo de inteligência inédita, jovem e arrojada, para dentro da Esplanada, como acabou por ajustar a própria função simbólica do Ministério. (Era tão desimportante antes que Fernando Henrique pinçou um petista, Francisco Weffort, para encabeçá-lo.) Duvido que Lula tivesse alguma clareza de objetivos em fazer um “ministro tropicalista”, mas de um jeito ou de outro ele acertou em cheio.
Numa fase crescentemente otimista da economia, esse Ministério (mesmo sem muito recurso) cumpriu o papel do “do in antropológico” de que Gil havia falado, em ondas de autorreconhecimento e crescimento da autoestima cultural. É totalmente tropicalista a habilidade de fazer das mazelas e paradoxos graça e sucesso narrativos.
Já Marina Silva, escalada para a defesa do meio ambiente, em eterna rota de colisão com a área econômica, não pode (ou não conseguiu) fazer valerem suas concepções, igualmente inovadoras. Foi um erro de Lula não cacifar a potência política de Marina – mas esse erro não caiu diretamente na conta do ex-presidente. Veio cair mais tarde, na conta de Dilma (a ministra “escolhida” na ocasião).
Dilma sinalizou de cara que pensava pequeno. Para ficar no mesmo exemplo do Ministério da Cultura, indicou a “irmã de Chico Buarque”, uma intelectual menor, autoritária, ressentida e retrógrada. Que se incumbiu desmantelar a metafísica tribal-tecnológica da Cultura, devolvendo pequenos poderes à elite provinciana que representava: a intelectualidade menor, autoritária, retrógrada e ressentida com o século 21, como ela mesma.
Tudo isso, desconfio, para que a presidente pudesse convidar Chico Buarque ao palácio em alguma ocasião, uma “vitória” simbólica de esquerda mequetrefe (deveria ter investigado antes, e saberia que Chico não apoiaria a ida da própria irmã para o Ministério). Dilma, definitivamente, pensa esquisito.
À sombra de Lula, no primeiro governo, Dilma não teve espaço para alucinar. Claro que também não alcançou nenhuma grandeza narrativa. Antes de ser colhida pelos protestos de julho de 2013, o melhor que seu governo conseguia pensar era uma campanha com Regina Casé oferecendo crédito para comprar tranqueiras para encher a casa própria recém-adquirida.
É exatamente aí que começa a autodesconstrução de Dilma. Sem coragem política para surfar o movimento e nem para se opor a ele, começou a pendular entre o novo patamar das exigências populares e as chantagens da base fisiológica que Lula havia construido (fisiologismo que está na origem dos pagamentos do mensalão). Acontece que Lula tinha um tamanho político que lhe permitia abraçar e negociar essas contradições; Dilma nunca chegou nem perto disso.
Confrontada na reeleição com o potencial de Marina, que reunia um histórico de militância com a aproximação com um eleitorado de centro-direita (quer coisa mais lulista do que isso?), e que poderia romper com a dicotomia PT-PSDB, Dilma teve que fazer a história voltar 12 anos atrás. Fingir que ainda estávamos tentando eleger Lula pela primeira vez, e não elegendo um presidente petista pelo quarto mandato consecutivo.
Porque Dilma simplesmente não tem como acertar? a) Porque para garantir a reeleição, teve que prometer uma guinada à esquerda que redespertou a paixão da militância – mas não tem como pagar essa guinada. E nem tem a chance, como Lula teve, de ser conivente com a elite econômica, recebendo ao mesmo tempo a conivência dos movimentos e sindicatos. Dilma precisa (e inclusive quer) governar como Aécio governaria. Mas não há como explicar porque alguém derrotaria Aécio… para agir como Aécio. Essa narrativa torta pode ser simplificada como “Dilma mentiu”. É o que cada vez mais gente acha. Já Lula, quando fez mais ou menos as mesmas coisas, “fez o que tinha que ser feito”. Percepção política é um negócio cruel, e irracional.
E b) Sob pressão, Dilma escolhe sozinha, e escolhe mal. É ressentida, controladora e vingativa: faz o gênero “vocês vão ter que me engolir”. Bancou sua amiga Kátia Abreu no Ministério (o símbolo mais hostil aos movimentos sociais que poderia haver); bancou sua amiga Graça Foster na presidência da Petrobrás muito além do razoável. Deveria ter aprendido com Lula como rifar amigos ao sinal de pressão mais intensa, um instante antes de virar questão de honra.
Trazer agora o Juca Ferreira de volta é apenas um detalhe bobo e descontextualizado, uma migalha irrelevante, mesmo que Juca faça uma boa gestão. Para apagar qualquer otimismo, num exagero de burrada, Dilma coloca na Petrobrás “o amante de Val Marchiori”, conseguindo fundir as pautas política e econômica com a policial e de celebridades. Isso numa semana cheia de más notícias políticas e econômicas – e policiais.
Uma coisa que o PT não pode tolerar (por ser avesso à sua própria natureza) é ser totalmente alienado de suas bases sociais – e é exatamente isso que a presidência está fazendo. Sinais são de que vão jogar tudo na conta da, err, presidenta. Na dúvida, Lula faz jogo duplo: afirma por um lado que há uma ação para “impedir que Dilma conclua seu mandato, criando todo e qualquer processo de desconfiança”.
Mas, por outro, afirma que o PT merece essa desconfiança, já que “tem se tornado cada vez mais um partido igual aos outros”. Eu não duvido nada de que algum estrategista petista já esteja pensando se um impeachment de Dilma agora (que poderia ser chamado de “golpe da burguesia”) não seria um caminho possível para a volta de Lula ao poder em 2018.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
Alex Antunes é jornalista, escritor e produtor cultural e, perguntado se era um músico frustrado, respondeu que música é a única coisa que nunca o frustrou. Foi editor das revistas Bizz e Set, e escreveu para publicações como Rolling Stone, Folha Ilustrada, Animal, General, e aquela cujo nome hoje não se ousa dizer. Tem uma visão experimental da política, uma visão política do xamanismo, e uma visão xamânica do cinema.
Desse ponto de vista, a vitória de Lula (e seu pragmatismo econômico) foi uma sorte para o país. Por outro lado, assim que teve uns trunfozinhos econômicos na mão, Lula os reinvestiu em políticas de inclusão. Esse timing, combinado com alguma sorte no cenário internacional, foi cacife suficiente para Lula contornar contra-narrativas cruéis – como a exposição do mensalão –, e ser reeleito.
Não é que as pessoas não enxergassem os defeitos de Lula e de seu governo. É que no pacote, tal como era percebido, o país como um todo (e não sua elite excludente) parecia levar vantagem. Claro que a elite preservava e até ampliava algumas vantagens, como o setor bancário por exemplo, que bateu seguidamente recordes de lucro. Assim, calibrando a narrativa, Lula seguiu agradando à direita e à esquerda.
Lula é um intuitivo. Quando colocou Gilberto Gil no Ministério, por exemplo, poderia estar cometendo um erro de natureza populista similar ao de Fernando Henrique, que colocou Pelé à frente do Ministério Extraordinário dos Esportes em 1995, como se “celebridade” na área pudesse se transformar automaticamente em algum tipo de autoridade ou competência.
Porém Gil, sucedido por Juca Ferreira, não só trouxe um tipo de inteligência inédita, jovem e arrojada, para dentro da Esplanada, como acabou por ajustar a própria função simbólica do Ministério. (Era tão desimportante antes que Fernando Henrique pinçou um petista, Francisco Weffort, para encabeçá-lo.) Duvido que Lula tivesse alguma clareza de objetivos em fazer um “ministro tropicalista”, mas de um jeito ou de outro ele acertou em cheio.
Numa fase crescentemente otimista da economia, esse Ministério (mesmo sem muito recurso) cumpriu o papel do “do in antropológico” de que Gil havia falado, em ondas de autorreconhecimento e crescimento da autoestima cultural. É totalmente tropicalista a habilidade de fazer das mazelas e paradoxos graça e sucesso narrativos.
Já Marina Silva, escalada para a defesa do meio ambiente, em eterna rota de colisão com a área econômica, não pode (ou não conseguiu) fazer valerem suas concepções, igualmente inovadoras. Foi um erro de Lula não cacifar a potência política de Marina – mas esse erro não caiu diretamente na conta do ex-presidente. Veio cair mais tarde, na conta de Dilma (a ministra “escolhida” na ocasião).
Dilma sinalizou de cara que pensava pequeno. Para ficar no mesmo exemplo do Ministério da Cultura, indicou a “irmã de Chico Buarque”, uma intelectual menor, autoritária, ressentida e retrógrada. Que se incumbiu desmantelar a metafísica tribal-tecnológica da Cultura, devolvendo pequenos poderes à elite provinciana que representava: a intelectualidade menor, autoritária, retrógrada e ressentida com o século 21, como ela mesma.
Tudo isso, desconfio, para que a presidente pudesse convidar Chico Buarque ao palácio em alguma ocasião, uma “vitória” simbólica de esquerda mequetrefe (deveria ter investigado antes, e saberia que Chico não apoiaria a ida da própria irmã para o Ministério). Dilma, definitivamente, pensa esquisito.
À sombra de Lula, no primeiro governo, Dilma não teve espaço para alucinar. Claro que também não alcançou nenhuma grandeza narrativa. Antes de ser colhida pelos protestos de julho de 2013, o melhor que seu governo conseguia pensar era uma campanha com Regina Casé oferecendo crédito para comprar tranqueiras para encher a casa própria recém-adquirida.
É exatamente aí que começa a autodesconstrução de Dilma. Sem coragem política para surfar o movimento e nem para se opor a ele, começou a pendular entre o novo patamar das exigências populares e as chantagens da base fisiológica que Lula havia construido (fisiologismo que está na origem dos pagamentos do mensalão). Acontece que Lula tinha um tamanho político que lhe permitia abraçar e negociar essas contradições; Dilma nunca chegou nem perto disso.
Confrontada na reeleição com o potencial de Marina, que reunia um histórico de militância com a aproximação com um eleitorado de centro-direita (quer coisa mais lulista do que isso?), e que poderia romper com a dicotomia PT-PSDB, Dilma teve que fazer a história voltar 12 anos atrás. Fingir que ainda estávamos tentando eleger Lula pela primeira vez, e não elegendo um presidente petista pelo quarto mandato consecutivo.
Porque Dilma simplesmente não tem como acertar? a) Porque para garantir a reeleição, teve que prometer uma guinada à esquerda que redespertou a paixão da militância – mas não tem como pagar essa guinada. E nem tem a chance, como Lula teve, de ser conivente com a elite econômica, recebendo ao mesmo tempo a conivência dos movimentos e sindicatos. Dilma precisa (e inclusive quer) governar como Aécio governaria. Mas não há como explicar porque alguém derrotaria Aécio… para agir como Aécio. Essa narrativa torta pode ser simplificada como “Dilma mentiu”. É o que cada vez mais gente acha. Já Lula, quando fez mais ou menos as mesmas coisas, “fez o que tinha que ser feito”. Percepção política é um negócio cruel, e irracional.
E b) Sob pressão, Dilma escolhe sozinha, e escolhe mal. É ressentida, controladora e vingativa: faz o gênero “vocês vão ter que me engolir”. Bancou sua amiga Kátia Abreu no Ministério (o símbolo mais hostil aos movimentos sociais que poderia haver); bancou sua amiga Graça Foster na presidência da Petrobrás muito além do razoável. Deveria ter aprendido com Lula como rifar amigos ao sinal de pressão mais intensa, um instante antes de virar questão de honra.
Trazer agora o Juca Ferreira de volta é apenas um detalhe bobo e descontextualizado, uma migalha irrelevante, mesmo que Juca faça uma boa gestão. Para apagar qualquer otimismo, num exagero de burrada, Dilma coloca na Petrobrás “o amante de Val Marchiori”, conseguindo fundir as pautas política e econômica com a policial e de celebridades. Isso numa semana cheia de más notícias políticas e econômicas – e policiais.
Uma coisa que o PT não pode tolerar (por ser avesso à sua própria natureza) é ser totalmente alienado de suas bases sociais – e é exatamente isso que a presidência está fazendo. Sinais são de que vão jogar tudo na conta da, err, presidenta. Na dúvida, Lula faz jogo duplo: afirma por um lado que há uma ação para “impedir que Dilma conclua seu mandato, criando todo e qualquer processo de desconfiança”.
Mas, por outro, afirma que o PT merece essa desconfiança, já que “tem se tornado cada vez mais um partido igual aos outros”. Eu não duvido nada de que algum estrategista petista já esteja pensando se um impeachment de Dilma agora (que poderia ser chamado de “golpe da burguesia”) não seria um caminho possível para a volta de Lula ao poder em 2018.
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Alex Antunes é jornalista, escritor e produtor cultural e, perguntado se era um músico frustrado, respondeu que música é a única coisa que nunca o frustrou. Foi editor das revistas Bizz e Set, e escreveu para publicações como Rolling Stone, Folha Ilustrada, Animal, General, e aquela cujo nome hoje não se ousa dizer. Tem uma visão experimental da política, uma visão política do xamanismo, e uma visão xamânica do cinema.
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