quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

TAILLEUR - Enio Andrade



 Acordei atrasada, justo no primeiro dia, hoje começo uma nova etapa

em minha vida. Fui transferida há pouco, foram cinco anos de exílio

voluntário no interior do estado. Não é que eu não gostasse da vida mais

tranquila e previsível, eu até gosto, questão de temperamento. Poder ser

quem você é, pelo menos para mim. Desfrutar de uma certa proximidade

entre as pessoas, poder vestir-se sem querer impressionar ninguém, o ponto

mais próximo da informalidade que é possível de ser atingido.

Minha semana foi só atribulação, fiquei perdida entre a mudança e a

transferência de tudo o que eu estava fazendo ao meu substituto. O único

dia que sobrou foi o sábado. Decidi passar a tarde no shopping procurando

alguma coisa que eu pudesse vestir nos primeiros dias. Meu guarda roupas

estava entre roupas de festa, descobri cedo que teria poucas oportunidades

de usá-las, e roupas do dia a dia, minha Mãe as chamava “uniformes”,

essas com as quais a gente se acostuma.

Todo o meu esforço transformou-se em uma única roupa. Podia não

parecer, mas aquele tailleur sintetizava tudo o que eu precisava, pelo menos

era o que eu estava pensando, transmitia toda uma formalidade e era

discreto. Ainda mais naquela cor, se alguém não quer ser notado o cinza é a

cor perfeita.

Mesmo tendo acordado cerca de uma hora antes estava atrasada,

perdi um tempo precioso alisando meu cabelo, às vezes ele se revolta. Ah

que saudade, mas o que é isso, mal saí de lá e já quero voltar. Tentei pensar

que é pra frente que se anda, essas coisas de autossugestão que a gente usa

pra se convencer de que o pior pode ser bom pra gente.


O táxi me deixou aos pés da escadaria que conduzia ao foro. A

subida foi penosa, a falta de costume com aquele salto alto começava a

apresentar a sua conta. O caminho até o elevador foi de sofrimento e

estupefação, o prédio novo do foro não ficava devendo nada a nenhum

palácio. Em todos esses anos confesso que vim pouco a capital.

Cheguei ao elevador exausta, o sapato me matando, já nem

conseguia raciocinar direito. Mal entrei e me deparei com o lugar destinado

a ascensorista vazio. Aquele banquinho minúsculo nunca me pareceu tão

confortável, nem pestanejei, sentei logo e uma sensação de alívio me

envolveu. Nem pude aproveitar muito, logo apareceu um gaiato que sem

sequer me dirigir um olhar falou como um mandatário:

Oitavo !!

Que coincidência pensei, o mesmo andar, apertei o botão sem

pestanejar, afinal de contas também estava indo para lá e não custava nada.

Não pude deixar de notar que o homem estava vestido com esmero. Em

seguida entrou outro homem com o mesmo padrão e cumprimentou o outro

com um sorriso entre dentes e simplesmente falou:

Oitavo !!

A capacidade do elevador era para cerca de doze pessoas, foram entrando e

repetindo:

Oitavo !!

O que me surpreendeu não foi a forma breve em que se deu a

lotação, mas, a maneira como as pessoas se dirigiam a mim. Depois da

primeira vez em que apertei o botão do oitavo andar não achei que fosse

necessário repetir o gesto. No entanto, todos que entraram no elevador se

dirigiram a mim sem ao menos se dignarem a me lançarem um olhar. Que

gente mal educada pensei, alguns até demonstravam certa contrariedade ao

acharem que eu não apertara o botão. Ficaram cochichando entre si,

provavelmente reclamando da minha morosidade.

Mal chegamos ao nosso destino, assim que a porta abriu, e as pessoas

se evadiram em um tropel. Deu até medo de tentar sair e ser atropelada. Ao

passar pela porta da sala de audiências pude notar que metade daquelas

pessoas estava sentada ali, provavelmente esperando a sua vez de

testemunhar. Entrei por uma porta lateral e após me identificar para o

secretário de audiências me dirigi ao meu lugar. Assim que sentei na

cadeira dei um bom dia a todos e declarei aberta a audiência. Precisei

repetir a minha fala pois notei que todas aquelas pessoas estavam atônitas

me olhando. Não pude deixar de pensar que graças àquele tailleur pude

perceber que a minha vida de Juíza naquela cidade não seria nada fácil.


ENIO ANDRADE é um consistente escritor pelotense 
se destacando como romancista que surge no cenário literário.
Recentemente lançou o romance "Dandara e a Princesa" a respeito do qual já comentamos em  A METADE SUL .
Acesse o link para ler 

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