quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

SAFATLE E AS ESQUERDAS SUICIDAS - Ricardo Almeida

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Li o artigo “Como a esquerda brasileira morreu“, de Vladimir Safatle publicado no jornal El País, e gostaria de compartilhar algumas reflexões com vocês, pois entendo que a ousadia do autor não é um fenômeno isolado das esquerdas que se consideram órfãs no Brasil. Apesar de não concordar com muitas das suas afirmações, a começar pelo título, entendo que ele está se propondo a um bom debate e permitindo que avancemos na construção de uma estratégia sensível para as esquerdas brasileiras.

O artigo começa afirmando que uma parte das esquerdas apostava num colapso do governo Bolsonaro e que isso não aconteceu. Ou seja, ele não considera que estamos no meio de uma disputa, e sim, que chegamos ao seu fim… Depois afirma que aquilo que foi chamado de esquerda (ele fala sempre no singular, sem identificar a força de esquerda) foi inoperante e é a causa de todos os males do que acontece com o país… Como se vê, Safatle está abordando duas questões distintas e não aprofunda nenhuma delas.

Em outro parágrafo ele faz um malabarismo com as palavras ao dizer que “não que se trata de afirmar que ela (a esquerda) está diante do seu fim puro e simples”. E prossegue: “Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde com sua própria história termina agora”. E conclui: “o pior que pode acontecer nesses casos é ‘não tomar ciência de seu próprio fim’”… Ou seja, é o fim, mas ela ainda não está morta e, ao mesmo tempo, não tomou consciência do seu próprio fim. Deu pra entender?

Depois, ele acerta ao perguntar: qual é esse ciclo que termina? O que esse ciclo representou? Quais são os seus limites? Após ler todo o artigo dá para perceber que ele sugere uma autocrítica das esquerdas, e que elas aprendam com as experiências do passado, principalmente com as estratégias de conciliação de classes dos períodos pré 1964 e dos governos de coalizão, patrocinados pelo PT, pós 2003.

O artigo afirma que a esquerda brasileira não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político, mas não entra no debate sobre as estratégias das esquerdas (no plural), quase todas caracterizadas por objetivos meramente eleitorais e imediatos. Esse deveria ser o debate fundamental das esquerdas brasileiras e Safatle perdeu a oportunidade de expor as suas propostas para a atual conjuntura… O que fazer? Com quem se articular? Qual é a pauta que unifica e mobiliza amplos setores populares?

Ele percebe que a maior prova da fraqueza das esquerdas brasileiras é a falta de debate público, mas resolve abdicar da disputa pelo nosso futuro. Ou seja, Safatle identifica um vazio na política brasileira, pela falta de uma alternativa de esquerda realmente crível neste momento e, para dar razão ao título do artigo, ele se inclui nesse suicídio coletivo. Em momento algum ele reconhece as diferentes manifestações que ocorreram, os debates que tivemos durante a campanha presidencial de 2018 e nem a campanha Lula Livre. O artigo cita a França e a sequência de greves e manifestações para contrapor ao que vimos no Brasil, mas poderia muito bem ter citado o Chile, a Bolívia e o Equador, que são exemplos mais próximos de resistência popular e democrática, e que nos enchem de esperança.

Penso que Safatle age como aquele pai que percebe a vida errante do seu filho e lança algumas perguntas no ar: onde foi que erramos? Qual é a razão da situação que nos encontramos? Esse devia ser o debate a ser travado pelas esquerdas e que Safatle passa muito pela tangente. Ao ficar apenas procurando “culpados” o artigo não contextualiza os fenômenos complexos.

O filósofo não poupa ninguém ao afirmar que toda a esquerda brasileira conhece apenas um horizonte de atuação: o “populismo de esquerda”. E diz que esse “populismo de esquerda” se esgotou sem que a esquerda nacional tenha se demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo de imaginar o que poderia ser “outra fase”. Até dá para entender o que ele quer dizer com “populismo de esquerda”, mas o que se poderia esperar de um governo de coalizão e de um Congresso dominado pelas forças conservadoras? Acredito que era possível avançar muito mais no controle social, por exemplo, e em algumas reformas fundamentais, como a reforma política etc. Sabemos que hoje, até o Lula reconhece que faltou realizar muito mais e o filme de Petra Costa é um registro da ingenuidade que a esquerda teve quando assumiu o governo e pensava estar no poder.

Então cabe uma pergunta: qual seria a “outra fase” a que Safatle se refere? Seria um tipo de assalto ao poder? Ele sugere convergir em uma figura e eu entendo que este é o grande problema do seu “populismo de esquerda”, pois passaremos a depender de “uma figura que seja capaz de representar e vocalizar esta emergência de um novo sujeito político”. Entendo que, para superar “esta fase”, precisamos trabalhar nas diferentes regiões e territórios para reconhecer as “figuras” que sejam capazes de representar e vocalizar as emergências dos novos sujeitos políticos. Não importa se a consciência do povo ainda é aquela que ele está aprendendo nas contradições do sistema. Afinal, estamos vivendo num sistema capitalista, e de um país periférico, e é óbvio que vamos nos dar de frente com uma mistura de JBS Friboi com MST, e em outras, com uma mistura de Proudhon com Walt Disney, etc etc etc… Ou seja, não existe e nunca existirá uma consciência geral e milagrosa do povo de um país ou de um território!

Safatle foi até o passado para buscar uma das “figuras” mais lúcidas (segundo ele) da nossa história, mas omitiu que Marighela defendeu uma aliança com a burguesia nacional quando fazia parte do PCB, e que o seu diagnóstico sobre a conciliação de classes somente ocorreu num segundo momento, próximo ao seu assassinato pelas forças da repressão. Por que será que as esquerdas brasileiras se negam a refletir sobre as táticas e estratégias adotadas no presente e no passado?

O autor do artigo também se equivoca ao afirmar que o governo Goulart era de esquerda, e ignora que as esquerdas brasileiras, até o surgimento do PT nos anos 1980, agiram sempre como forças auxiliares dos governos que representavam a resistência e a relutância da burguesia nacional. Foi o golpe de 1964 que acabou com a ilusão de uma revolução democrática capitaneada pela burguesia nacional e, foi somente em 2003 que uma parte das esquerdas venceu as eleições nacionais e formou um governo de coalizão que promoveu a mais longa experiência de democracia e de inclusão social nos cento e poucos anos de república. Quem ainda não entendeu que o golpe de 2016 foi uma resposta da burguesia nacional e do capital internacional aos avanços que conquistamos, não reconhecerá e não contextualizará a crise econômica e política em que nos encontramos.

A parte mais lúcida da reflexão é quando o autor reconhece que as forças de esquerda sempre estiveram despreparadas para os golpes, sem capacidade alguma de reação efetiva diante dos retrocessos que se seguiram. No entanto, ele não diz que somente nos anos 1970, com a industrialização do país, é que surgiu uma forte classe operária no Brasil e que houve o envolvimento de amplos setores populares, como professores, estudantes, pequenos comerciantes, profissionais liberais etc, na luta política. O artigo também ignora a atual mudança na estrutura de classes no Brasil e no mundo, provocada pela revolução digital tecnológica sem precedentes patrocinada pelos donos do capital.

O artigo afirma que a esquerda brasileira fez o mesmo erro com o final da ditadura militar e com o advento da Nova República. No entanto, quem tem boa memória, vai lembrar que as esquerdas brasileiras (no plural) tinham posições diferentes em relação à Nova República, e que o PCB e o PCdoB, por exemplo, defendiam uma estratégia de conciliação de classes. Por seu lado, o novato PT assumiu uma posição radicalmente oposta, e acumulou algumas derrotas decisivas, como a Anistia, a Constituinte e as Diretas Já!

É verdade que as esquerdas foram se domesticando após algumas vitórias nos municípios e nos estados, principalmente com a renovação despolitizada dos seus quadros políticos, e com a chamada “governabilidade”, defendida pela chapa Lula-José de Alencar. Depois, veio o PMDB de Michel Temer e de Romero Jucá, e os erros do segundo governo Dilma, com Eduardo Cunha na presidência da Câmara dos Deputados.

Nesse sentido, Safatle percebe que houve um “movimento em direção a um jogo de alianças entre demandas sociais e interesses de oligarquias locais descontentes tendo em vista mudanças ‘graduais e seguras’”, mas não relaciona isso ao fato dos intelectuais brasileiros evitarem sujar os pés e a bunda de barro ao se misturar às lutas populares, quilombolas, indígenas e das chamadas “periferias”. Quando diz que “a esquerda” morreu, ele está se colocando fora da disputa pela hegemonia política-cultural. Apesar de bem intencionado, suas críticas “às esquerdas em geral”, infelizmente, acabam caindo no vazio, pois ele não identifica os nomes das forças políticas em questão.

Entendo que Safatle tem até um pouco de razão, mas que as suas críticas “à esquerda” permanecem no campo meramente acadêmico, de constatação, e pouco contribuem para modificar as estruturas e as circunstâncias que vivemos no Brasil e no mundo. Concordo que nós, das esquerdas brasileiras, ainda não conseguimos fazer o dever de casa e que agora estamos pagando muito caro por isso… Mas acredito que o futuro e a democracia ainda estão em disputa, tanto aqui como na Argentina, de Peron, no Chile, de Allende, no Uruguai, de Seregni, na Venezuela, de Bolívar, e na França, de Danton.

Ao afirmar que “todo fascismo nasce de uma revolução abortada”, Safatle joga a culpa nas esquerdas e revela que ainda não entendeu a dinâmica da luta de classes internacional, a crise do sistema capitalista mundial e a revolução digital tecnológica em curso. Mais uma vez fica claro que ele evita contextualizar os fenômenos e prefere procurar os “culpados”… Ao invés de analisar as relações sociais, culturais e econômicas, que são capazes de revelar a máxima compreensão possível da realidade, ele joga todo o ônus na culpa e na incapacidade de elaboração da “esquerda brasileira”.

Concordo quando ele diz que é preciso polarizar com o governo Bolsonaro, mas é exatamente isso que ele não faz. Safatle quer alguém para carregar o caixão e ficar em silêncio frente ao suicídio das esquerdas, ao invés de revolucionar e promover um debate público objetivo. Preferiu elaborar reflexões abstratas e não apontar caminhos que sejam capazes de nos tirar dessa difícil situação.

Quem acompanha as publicações de Safatle sabe que a generalização é uma característica das suas análises e reflexões. A maioria das suas críticas, até a publicação desse artigo (que ele disse que não gostaria de ter escrito), era endereçada unicamente aos governos de coligação do PT. Em dezembro de 2019, ele chegou a afirmar que estávamos vivendo um momento de rebelião iminente, mas agora, durante a maior greve dos petroleiros, em defesa do emprego, do patrimônio público e da soberania nacional, resolveu se juntar às pessoas que se contentam em polarizar sobre algum aspecto negativo das esquerdas em geral.

Nesse artigo, Safatle acabou ignorando que o verdadeiro aprendizado das organizações surge da reflexão sobre as experiências vividas, de dentro e não de fora dos movimentos reais, a partir da práxis (consciência prática, histórica e sensível) coletiva, e não apenas da leitura dos livros e dos desabafos. Nesse sentido, cabe um elogio ao autor pela ousadia em propor esse debate radical (a morte é radical), mas não podemos deixar de destacar a importância do engajamento nas nossas experiências de vida… Até porque os petroleiros estão aí para provar que sempre existirá resistência política após a morte das esquerdas suicidas.

(*) Ricardo Almeida - Consultor em Gestão de Projetos TIC

FONTE 

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