Eu não te quero aqui para que andes sobre as águas ou me defendas de tempestades e raios que reluzem à noite. Te quero aqui para que me digas das vagas e das marés, de Netuno e das sereias, dos tantos navios naufragados ou das garrafas com mensagens em seu bojo que chegam às praias.
Não te quero aqui para que espanes a areia do meu corpo ou estendas toalhas para que me deite, mas para que me contes da solidão nos desertos, dos homens azuis que perambulam, da variedade de cores que a areia toma em praias onde nunca se pisou, das orlas feitas em pedras e musgos, em algas e conchas.
Eu não te busco aqui para que me tomes pela mão e me leves pelos caminhos verdes que eu escolho, mas para que me fales do brilho nos teus olhos quando passas por uma árvore alta, para que me expliques de troncos e de ramos e para que descubras, junto comigo , os seus nomes e aquela época precisa em que transmutam as folhas verdes brilhantes para o amarelo, o ouro e, ao fim, para aquele vermelho crepuscular, antes que se desnudem de todo.
Não te chamo aqui para que limpes meus caminhos e estendas tapetes, mas para que me fales da terra e da relva, dos países onde ovelhas ou cabras disparam pelos montes, onde ainda existem pastores que tocam flautas enquanto esperam o momento do retorno, onde pequenas choupanas guardam o pão e o mel que será alimento para a fome.
Não te procuro aqui, nestas ruas por onde ando, para que me dês o apoio do teu braço ou da tua mão, mas para que me fales de antigos moradores destas casas velhas, das pessoas cheias de sonhos e ilusões que viveram nelas, de como foram construídas com suor ou em meio a facilidades, de como cada tijolo foi uma ilusão de poder, de abrigo, de conforto.
Eu não te busco aqui, nestes sonhos que eu sonho, para que me faças de princesa ou cortesã, para que me estendas coroas ou cetros, ou bordões, mas para que me contes sobre amores apaixonados entre a realeza e a plebe, entre religiosos e ateus, entre pessoas feitas umas para as outras ou não. Para que me digas de corações desvairados, de mortes e de incestos, de venenos e de punhais.
Não te chamo aqui, nestas noites insones, para que subas montanhas por mim, mas para que fales sobre aqueles que percorreram longas estradas, subiram cordilheiras e desceram a vales, a vulcões, que enfrentaram ciclones, dilúvios, cheias, por intrepidez, para salvar alguém, ou para colher uma flor para a amada.
Não te trago até mim para que transformes água em vinho, ou sirvas-me uma taça, mas para que me digas das cores das uvas, de como ficam quando os raios de sol batem sobre as videiras, sobre tonéis de carvalho e sobre pés esmagando a fruta. Para que me expliques do tinido suave de uma taça lapidada em cristal e, levantando a tua contra a luz se veja a cor suave do vinho que provas e deixa teu gosto em minha boca.
Eu não te quero junto a mim para que me vistas de sedas e linhos, mas para que teças com dedos habilidosos uma delicada teia sobre nossas cabeças, para que cries uma proteção contra os desatinos da vida, contra a inconstância do tempo, contra a fuga das horas.
Não te quero comigo para que me alimentes como a um pássaro pequenino, mas para que tuas mãos, teus olhos, ó sem nome, sejam meu próprio alimento, água em abundância, meu sentimento e meu consolo.
Eu não te quero aqui para que sejamos um, nem para que sejamos dois. Mas para que sejamos compreensão e cumplicidade, afeto e paixão, cuidado e carinho. Para que sejamos nós. Para que sejamos encontro. Para que possamos ser, ao mesmo tempo, infância e adolescência, juventude e maturidade, velhice e o eterno sono que vem depois.
Em 11/08/2021