A cada cinco anos, coincidindo com as eleições municipais, artistas e profissionais ligados à arquitetura e ao design da cidade de Montevidéu participam de uma campanha artístico-política paralela às eleições. Partindo de uma perspectiva ancorada nas artes, o projeto conclama a participação da sociedade para reimaginar como pode ser a vida na cidade.
O projeto Ghierra Intendente, que pode ser traduzido como “Ghierra Prefeito”, é uma performance-exposição que discute beleza, memória e patrimônio arquitetônico na cidade de Montevidéu. O grupo apresenta propostas que usualmente são deixadas de lado em campanhas tradicionais pela prefeitura, chamando a atenção para que entrem na agenda dos políticos. O coletivo traz uma outra visão sobre a cidade, ressaltando o papel dos habitantes de Montevidéu neste ambiente.“O nosso projeto tem a ver com a recuperação do tempo e do espaço da cidade para os cidadãos, e da consciência de que a cidade somos nós.”
Alfredo Ghierra
PRESERVAR O PATRIMÔNIO HISTÓRICO CONTRIBUI PARA A QUALIDADE DO ESPAÇO PÚBLICO
Montevidéu não tem nem 300 anos, mas, no contexto da América Latina, parece ser uma cidade mais antiga do que outras por conta do seu incrível acervo de arquitetura. No entanto, nem a população nem os gestores políticos acabam dando atenção para esse tesouro, e a falta de políticas públicas nas cidades se torna uma ameaça à preservação da memória.“Tudo começou há dez anos pela minha preocupação com a destruição sistemática do patrimônio arquitetônico da cidade”, conta Ghierra. De início, o projeto realizava denúncias, e foi então que Ghierra percebeu que os problemas com que estavam lidando eram muito mais complexos.
Essa problemática incide sobre a identidade urbana. A preservação do patrimônio cultural contribui para a qualidade do espaço público e para a coesão geral da sociedade, além de ser uma indústria criativa e cultural enorme que gera muitos empregos.
O projeto foi se desenvolvendo organicamente. No primeiro ano foi realizada uma mostra de ideias e olhares para a cidade de Montevidéu, e o sucesso foi muito grande. Mas foi só cinco anos depois, com o auge das redes, que o projeto realmente estourou. Para cada campanha, o grupo tem uma frase emblemática. Em 2015 foi “A cidade que a gente quer” e, em 2020, sob o lema “Somos a cidade”, a mostra foi dividida em três eixos: patrimônio, ecocidade e periferia.
“Quando você rompe esse elo com o que foi feito pelas gerações anteriores, você corre o risco de perder a noção histórica do que é a construção de uma cidade.”
Alfredo Ghierra
“Montevideo: las dos ciudades” (Montevidéu: as duas cidades) da BMR Productora Cultural para a exposição do Ghierra Intendente de 2020. | © BMR Productora CulturalO Ghierra Intendente hoje reúne muitas pessoas. Uma de suas maiores preocupações ao convocar artistas, arquitetos e designers para o projeto foi criar espaço para que novas vozes e perspectivas fossem ouvidas. “Os governos dificilmente contam com o artista ou com o olhar das artes, e raramente você vê essas profissões fazerem parte dos quadros de governo”, conta Ghierra.
A BELEZA COMO FORMA DE AÇÃO
A principal questão com a qual o projeto trabalha é a imaginação, tanto no sentido da criação de outro mundo possível quanto como forma de encorajar a participação das pessoas na construção da cidade. Através das mostras e outras iniciativas, o grupo busca criar ideias que provocam as pessoas a agir.Ghierra diz que para governar uma cidade ou um país é necessário lidar com a realidade do dia a dia e também programar o futuro. Esta é uma tarefa muito difícil, e que demonstra a complexidade envolvida no funcionamento público. “O que não consigo perdoar é a falta de imaginação. É nisso que queremos insistir: na imaginação e também em muito humor”.
A cidade, se abandonada às regras do mercado, fica privada de processos democráticos. No Uruguai há uma forte tradição democrática, mas parte da sociedade civil acha que é suficiente votar a cada eleição e, no meio tempo, só pagar os impostos. “Os governos não são capazes de abranger o espectro inteiro do que significa uma cidade”, afirma Ghierra, ressaltando que, para ele, a cidade é um esforço coletivo, no qual a sociedade civil, cidadãos e artistas desempenham um papel decisivo. Se a sociedade não participa, a cidade não funciona. O projeto Ghierra Intendente revela como os artistas podem usar seu olhar como uma ferramenta que pode mudar a realidade.
O PROJETO INSERE NA AGENDA DA CIDADE TEMÁTICAS QUE ERAM IGNORADAS
Em 2020, a performance aconteceu pela terceira vez. Ghierra nos conta que, surpreendentemente, as últimas eleições representaram a primeira vez em que todos os candidatos incluíram o reconhecimento, a preservação e a valorização do patrimônio histórico em suas agendas políticas. “Isso antes não existia, sabe? Todos incluem transporte, mobilidade, resíduos... mas dessa vez também incluíram patrimônio. Toda mudança cultural é muito lenta, não é imediata. É difícil dimensionar, mas vale a pena”.Ao ocupar esse lugar que estava vago, o grupo se transformou em um interlocutor para as autoridades. Ghierra ressalta que demorou até que eles criassem esse vínculo de confiança com o poder político e que sua maneira de trabalhar fosse vista não como uma brincadeira, mas como uma voz importante.
“É realmente sério, mas seriedade não quer dizer falta de imaginação e muito menos falta de humor.”
Alfredo Ghierra
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