Para o Adelmo Genro Filho, in memoriam, pelas suas importantes reflexões sobre a consciência histórica, prática, crítica e sensível.
“Eu avisei!”, diz um comentário. “Eles têm o apoio do STF, da Rede Globo, dos banqueiros nacionais e internacionais, dos exportadores, dos especuladores, de pastores das igrejas neopentecostais e de uma velha casta militar e, juntos, irão sacramentar o Golpe de Estado, vender as nossas riquezas e explorar ainda mais o povo brasileiro”, esclarece outra postagem. Uma terceira alerta que se trata de uma guerra híbrida, de proporções internacionais. Todas estão cobertas de razão! No entanto, se lhes tirarmos a razão, sobrará apenas o hábito que a maioria dos brasileiros tem de apostar somente em eleições e no modo tradicional de fazer política.
Com a proliferação das redes sociais, boa parte da esquerda brasileira está ficando cada vez mais saturada por eventos e sensações efêmeras compartilhadas, que se desmancham no ar, e está deixando de valorizar as grandes experiências coletivas que tivemos recentemente, como a formação de diversos comitês pela democracia, as Caravanas Lula, o Movimento #EleNão e as próprias campanhas #HaddadManu e #BoulosGuajajara. Essas experiências (com ações digitais e presenciais) já estão na memória afetiva de uma parte da população brasileira, mas precisam ser melhores compreendidas para tornarem-se referências na transmissão de saberes simbólicos para as gerações que estão chegando.
Na verdade, o Brasil ainda não cicatrizou as suas feridas históricas. Vejam que, até hoje, persiste uma forte cultura escravocrata e anti-indígena entre nós, torturadores nunca foram condenados e a impunidade segue sendo um privilégio dos sonegadores de impostos e dos vendilhões das nossas riquezas. Lembrem que não houve resistência ao golpe de 1964 e nem ao impeachment (golpe de novo tipo) da presidenta Dilma Roussef, em 2016. Aliás, apesar de algumas mobilizações importantes, as esquerdas brasileiras foram derrotadas nas campanhas pela anistia, no ano de 1978, pelas Diretas Já, em 1984, e pela Constituinte, livre e soberana, em 1988. O Partido dos Trabalhadores venceu as eleições de 2002 com a “Carta aos Brasileiros” e o “Lulinha Paz e Amor”, que tinha o empresário José de Alencar como vice e um programa de caráter republicano, democrático e popular.
Em abril de 2018, quando Lula se entregou para a Polícia Federal, no Sindicato de São Bernardo do Campo, os seus companheiros mais próximos ouviram a seguinte declaração da maior liderança do Brasil: “Foi o máximo que conseguimos reunir até aqui…”. Baseado nessa afirmação sensata e sensível, após a realização de grandes mobilizações em caravana pelo país, é possível deduzir que a maioria dos “intelectuais orgânicos” brasileiros não é tão orgânica assim, e que ainda não foram organizadas forças regionais suficientes para resistir aos frequentes golpes das elites locais aliadas ao capital financeiro internacional.
Uma reflexão madura identificaria diversos fatores que contribuíram para consolidar essa cultura contemplativa entre as esquerdas brasileiras. No entanto, a partir de uma análise das postagens que circulam atualmente nas redes sociais, é possível perceber alguns dos motivos que levam o povo brasileiro a se manter disperso e perplexo diante das adversidades. Em boa parte dessas publicações, as coisas, a realidade, o mundo sensível ainda são vistos sob a forma de objeto ou de abstrações, e não com sensibilidade histórica, crítica e prática, enfim, como práxis. Trata-se de posturas teóricas que ignoram a práxis e o comprometimento, pois são manifestações contemplativas que não levam os interlocutores a lugar nenhum. Elas não tratam as pessoas como sujeitos de uma ação coletiva e nem reconhecem a dinâmica dos movimentos sociais, pois ainda não adquiriram uma consciência objetiva/subjetiva da realidade.
Embora sejam reflexões importantes, muitas delas são apostas, provocações e/ou perguntas de escolha simples (ou isto ou aquilo?), e não percebem que somente por meio das experiências, da práxis, é que as esquerdas brasileiras conseguirão comprovar as suas verdades e o caráter terreno das suas teses e discursos. Ficar apenas disputando sobre a realidade ou não realidade de um determinado pensamento, isolados da práxis, é uma atitude meramente acadêmica e/ou contemplativa.
É verdade que a maioria do povo brasileiro ainda possui uma consciência baseada no imediatismo, pois ela é fruto das circunstâncias da vida e da educação que essas pessoas receberam. Mas não podemos ignorar que essas circunstâncias e as consciências somente poderão ser transformadas pelos próprios seres humanos – vistos como sujeitos e não como objetos –, e que a maioria dos agricultores, dos camponeses, dos operários, dos professores, dos estudantes, dos jornalistas, dos artistas, dos parlamentares etc. ainda precisa assimilar uma nova cultura política baseada na convivência, na fraternidade, na justiça e na igualdade de direitos sociais.
Somente a partir da máxima compreensão possível da realidade será possível mudar as circunstâncias e a cultura política do povo brasileiro. Ou seja: é preciso entender as incoerências entre o mundo representado pelas teorias e o mundo real, para eliminar ao máximo as suas contradições. Questões objetivas, como a defesa de um salário mínimo justo, da previdência pública, da soberania tecnológica, dos recursos naturais, da biodiverisidade, da mobilidade urbana, da liberdade de Lula, da Petrobrás, da demarcação das terras indígenas e quilombolas, das relações de trabalho, das novas formas de família etc., são as que precisam ser questionadas e praticamente transformadas, e não aquelas que estão apenas no reino dos céus.
Percebam que, além de adotar um pensamento abstrato, uma parte das esquerdas brasileiras ainda não encara o mundo como atividade humana crítica, prática e sensível nas suas relações diárias. Em geral, a sua crítica ao processo histórico pressupõe indivíduos totalmente abstratos e sem interesses econômicos, sociais, culturais e/ou políticos. Trata-se de um “sentimento fantasioso”, pautado por terceiros e construído socialmente, em que os indivíduos deixam de ser reais ou considerados no contexto de uma determinada classe, de um determinado território e de uma cultura singular.
Como a vida em sociedade é, ao mesmo tempo, teórica e prática, todos os mistérios que conduzem a teoria para este tipo de abstração encontrariam a sua solução racional na consciência histórica, prática, crítica e sensível. No entanto, o máximo que os críticos contemplativos conseguem é analisar os indivíduos isolados do seu contexto social, pois o seu passatempo é o de apenas cobrar uma atitude “dos outros”, dos partidos, dos governos e das demais organizações políticas, porém o ponto de vista de quem quer mudar a sociedade deve ser crítico e propositivo. Ou seja, não ser apenas pautado, mas reconhecer a diversidade de interesses e encontrar os caminhos que sejam capazes de transformar-nos individual e coletivamente. Para isso ocorrer será preciso se comprometer com uma parte da sociedade na defesa da humanidade inteira, além de socializar-se e de engajar-se nas lutas locais e regionais.
Por exemplo, a maioria das pessoas não sabe ou não lembra que os governos militares devolveram o país para os civis em 1985 – por via de eleições indiretas – após uma longa crise do petróleo e do capitalismo internacional, e que eles deixaram como herança uma inflação e um custo de vida muito altos, uma enorme dívida externa (com o Fundo Monetário Internacional), o êxodo rural em todas as regiões do país, a favelização e o crescimento desordenado das cidades, assim como vários casos de corrupção, de torturas e de assassinatos de opositores. Também é raro encontrar pessoas refletindo sobre as mudanças que ocorreram no mundo de lá pra cá, como o caso das empresas multinacionais ou transnacionais que instalaram os seus parques industriais em território brasileiro (e sul-americano), criaram redes de transações econômicas e de espionagem que agem fora do controle dos governos, que surgiram novas tecnologias, novas profissões, e que já se formou uma nova estrutura de classes sociais no país e no mundo. E que, apesar dessas profundas mudanças e da experiência vivida de caráter democrático e popular, principalmente durante os governos Lula e Dilma, a maioria das forças da esquerda brasileira ainda mantém antigas concepções de mundo e de organização política.
Não é por acaso que a história do Brasil se repetiu (mais uma vez) como uma farsa. Para isso não ocorrer novamente, será preciso aprender com as experiências do passado, com aquilo que as organizações fizeram ou deveriam ter feito, inclusive com as aventuras, os heroísmos e as rebeldias que ocorreram no final dos anos 60 e no início dos 70, e com esta nova derrota eleitoral. Não podemos permitir que o derrotismo e a culpa invadam a mente das pessoas, pois 47 milhões de votos em #HaddadManu não é pouca coisa… Somados aos 42 milhões de votos brancos e nulos resulta que mais da metade do povo brasileiro não votou em Bolsonaro e que agora terá a oportunidade de adquirir uma consciência histórica, prática, crítica e sensível.
Saibam que este projeto entreguista, colonialista, racista e patriarcal somente terá chances de prevalecer por meio do marketing, da mentira, da violência, da repressão e do estado de exceção, no meio das chamadas guerras híbridas. Como as novas gerações já experimentaram tempos melhores e estão surgindo organizações livres, autônomas e democráticas, existe a possibilidade de o povo brasileiro acordar de vez e, finalmente, cicatrizar as suas feridas históricas. Não se trata de um jogo de apostas, mas de saber de qual dos lados estaremos a cada luta real e concreta que surgir. De que adianta acertar apostas sobre o futuro se não estamos juntos nas lutas do povo?
Para avançar, precisamos ousar até nos libertarmos de certas ilusões, fantasias e dogmas que persistem entre nós, antes que se dispersem as forças que emergiram nessas recentes experiências coletivas. Se não articularmos as atividades e as forças que surgiram em cada município, estado e país, não vamos ultrapassar as fases do consumo de informação e nem do mero elogio às “celebridades” políticas. Ou seja, ficaremos presos à rigidez dos gabinetes parlamentares, dos dirigismos partidários e não estaremos contribuindo para o fortalecimento das organizações que já atuam junto à sociedade.
Estamos de acordo que Bolsonaro é um falsário – um falso cristão e um falso nacionalista – e também que ele e Moro representam um aprofundamento do golpe e do desgoverno Temer… Mas não concordamos que se trata de uma aposta definitiva do neoliberalismo internacional. Percebam que o governo Bolsonaro começou a sangrar antes mesmo de implementar o seu programa, pois alguns países parceiros, estratégicos do ponto de vista comercial – como a China, a Rússia, a França e a Alemanha, por exemplo, já fizeram as suas primeiras advertências aos empresários brasileiros. Além disso, apenas 46 delegações estiveram presentes na sua posse, e isso é um sinal para bons entendedores.
Por outro lado, a família Bolsonaro já está envolvida em denúncias de corrupção e eles estão definitivamente obrigados a seguir as ordens de quem realmente está mandando no Brasil: o capital estrangeiro, aliado a sua intelligentsia nacional entreguista. O desastre ficou mais evidente após a adoção das primeiras medidas do novo governo, de retorno à órbita dos EUA, de exploração da força de trabalho, do poder dado aos ruralistas para demarcação de terras indígenas e quilombolas etc. Por isso precisamos reorganizar as nossas alternativas de poder local e global: depois de um breve período de refluxo e de reflexões, devemos estar preparados para as novas disputas e tempestades que se avizinham.
Como a vida é uma possibilidade, já que não depende apenas das vontades e das opiniões das pessoas, precisamos pensar na hipótese do falso messias, dos pastores gananciosos e desta casta militar entreguista não conseguirem iludir e enganar a maioria do povo por muito tempo. Quanto irá durar esta disputa entre os donos do capital e os trabalhadores brasileiros? A resposta está diretamente relacionada ao grau de desmemoria, de desorganização, de solidão e de descrença nas reflexões políticas que persistirem entre nós. Se não aprendermos a aproximar as relações digitais das presenciais ficaremos aguardando que ocorra um milagre no Brasil, e as futuras gerações serão obrigadas a enfrentar verdadeiros tornados, ciclones e furacões.
Nota do autor: este artigo foi escrito a partir de uma releitura das Teses sobre Feuerbach, do jovem Marx. Trata-se de onze notas curtas, escritas na primavera de 1845. O texto original somente foi traduzido para outras línguas em meados do século 20.
(*) Ricardo Almeida, Consultor em Gestão Projetos TIC
FONTE: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2019/01/desmemorias-ilusoes-e-novas-tempestades-por-ricardo-almeida/
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