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Charge do Charlie Hebdo |
De uma coisa, sem dúvida, temos que agradecer ao Movimento Brasil Livre(MBL).
Ter chamado a atenção de forma inclusive mundial para a Exposição "Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira" realizada no Santander Cultural em Porto Alegre.
Subitamente a partir da campanha grosseira de ataque promovida pelo movimento abriu-se uma discussão inesperada sobre vários aspectos desde censura artística até o próprio conceito ou concepção de arte.
O MBL, sem querer até porque seu objetivo era meramente de censura e propaganda política, propiciou esse momento que certamente não iria existir.
Já decorriam várias dias de exposição e decorreriam os dias finais sem que nada chamasse a atenção até porque os quadros polêmicos são apenas uns poucos dentro de uma exposição muito vasta.
A mostra tinha obras de 85 artistas, entre eles Lygia Clark, Di Cavalcanti e Alfredo Volpi. Para a artista Ana Norogrando, a decisão do Santander Cultural em cancelar a exposição é “uma guinada à Idade Média”
Quanto aos argumentos do MBL só restaria uma possível discussão, vejam bem, possível, sobre o acesso de crianças à exposição.
Como aspecto mais importante surge a questão da censura no seu todo e, principalmente, o conceito de arte que ficou pouco discutido até por ser um tema muito amplo.
Mas é preciso entender que uma obra, seja qual for, não se torna automaticamente um produto artístico pelo fato de ser contestadora ou francamente "agressiva".
E tampouco por representar cenas de práticas sexuais.
Isto, obviamente, seria um conceito muito simplista e, portanto, equivocado e que, ao contrário, pode, isto sim, estar manifestando uma visão burguesa.
Há outros fatores, muitos outros, de natureza estética principalmente, que devem ser considerados mas que, pelo que se observa, foram adequadamente considerados pelo curador da mostra Gaudêncio Fidelis.
Considero relevante nesse aspecto que pouco ou nada tenha sido discutido sobre os
autores das obras alvo da polêmica. Quem são, o que se sabe sobre eles, sobre o conjunto de suas obras.
Com relação à obra Cenas de interior II, de 1994, um dos principais alvos de ataques , cabe mencionar as palavras da própria artista Adriana Varejão que ressalta que "busca jogar luz sobre coisas que muitas vezes existem escondidas" e que Cenas do Interior II é "uma obra adulta feita para adultos"
E acrescenta: "Esta é uma obra adulta feita para adultos. A pintura é uma compilação de práticas sexuais existentes, algumas históricas (como as shungas, clássicas imagens eróticas da arte popular japonesa) e outras baseadas em narrativas literárias ou coletadas em viagens pelo Brasil. O trabalho não visa julgar essas práticas. Como artista, apenas busco jogar luz sobre coisas que muitas vezes existem escondidas. É um aspecto do meu trabalho, a reflexão adulta"
Quanto ao aspecto da suposta agressão religiosa , a questão recai na liberdade de expressão que deveria ser garantida.
É o caso de outra obra atacada, "Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, 1996, de Fernando Baril.
Mas levando a discussão para outro terreno, é interessante lembrar que em 2015 o semanário francês Charlie Hebdo foi alvo de um ataque armado por extremistas muçulmanos, com a morte de 12 pessoas incluindo jornalistas do hebdomadário, pela publicação de charges consideradas ofensivas à religião muçulmana.
Os franceses se uniram em defesa da tese do direito à blasfêmia, ou seja, basicamente de se promover livremente o que se quiser, por mais agressivo que seja, contra religiões, instituições e personalidades políticas em geral.
Uma questão de honra para os franceses indiferentemente da honra de quem se ataque.
Mas é bom não esquecer que ao mesmo tempo se unem aos Estados Unidos e à Inglaterra a promover a destruição da Síria e outros países muçulmanos da região.
Ou seja, é preciso entender que o contexto dessas discussões pode ser mais amplo do que simplesmente tomar partido, apressadamente, por um lado ou pelo outro.
Fica como o aspecto mais lamentável de todos, bem mais do que o ataque dos integrantes do MBL, a decisão do Santander de fechar a exposição e a certeza de que daqui em diante só haverá de promover mostras muito bem comportadas.
Acovardou-se.