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foto P.R.Baptista |
Arlete tem 58 anos e toda a sua vida foi dedicada a ajudar os outros. Desde menina aprendera com a mãe a importância do trabalho, em se tratando de sua geração, era uma obrigação a mulher ser responsável pelo serviço da casa, além da educação dos filhos.
Seu pai era muito rígido, militar de carreira. Ela casou com o primeiro namorado, também militar, e sua vida foi sempre muito regrada, sem sobressaltos, não tinha nada de singular.
Apesar desse casamento lhe dar uma filha, razão de sua vida, seu relacionamento sexual era quase uma obrigação para aliviar o marido, só soube que uma mulher podia gozar ouvindo as confidências de uma amiga de faculdade, quando voltou a estudar, fato que deixou seu marido muito desgostoso. Daí para a separação foi um passo.
Embora fosse uma mulher muito sensível era também muito conservadora, por força de toda sua formação. Mas, num arroubo de coragem conseguiu se separar, foi muito criticada, porém, foi em frente. Depois de separada sua vida só melhorava. Formou-se em pedagogia e foi trabalhar na escola, uma das primeiras carreiras em que as mulheres tiveram algum espaço.
Tudo ia muito bem, bem demais. Um dia à tardinha, depois da hora em que os alunos saiam, revisava um material para a aula do outro dia, quando foi informada que alguém queria falar com ela, ao telefone. Chegando lá, foi como se o chão tivesse se aberto a seus pés, sua única filha fora atropelada e estava a caminho do hospital. Acharam o número da escola anotado em uma agenda, dentro da bolsa da garota.
No caminho até o hospital, rezou muito para que deus lhe desse essa oportunidade de abraçar e beijar sua filha novamente, e com vida. Tudo em vão. Chegando lá, encontrou sua filha morta, era o fim de tudo. Sua vida medíocre chegara ao fim, todos os seus esforços foram sempre pensando nela e agora não via nenhum sentido em continuar vivendo.
Passados três meses do acontecido, Arlete ainda estava sob cuidados médicos e mesmo tendo passado a fase da medicação mais forte, parecia um zumbi. Para ela não existia dia e noite, pois sua rotina era um emaranhado de sombras em que passado e presente estavam sempre misturados e não faziam sentido algum. Andava pelo apartamento como se fosse uma sombra de alguém que já tinha existido. Sua única ligação com o mundo real era sua empregada, Marilu, que estava sempre ao seu lado. Marilu vivia dizendo que a patroa tinha que ter alguma atividade, que aquilo ia lhe fazer muito bem, etc . . .
Numa certa manhã, Arlete estava olhando para a lixeira e num repente deu um grito ! Já sei !
Marilu quase desmaiou de susto. Arlete tivera uma ideia que iria mudar sua vida.
Cabelo de fogo aparecera do nada no lixão, era chamado assim pelos meninos que perambulavam por ali. Muito alto, usava sempre um macacão marrom, com um símbolo esquisito. Seu cabelo e barba muito vermelhos lhe conferiam uma aparência muito estranha, estava no lugar certo. Ali ninguém tinha passado nem futuro, todos eram anônimos, não perguntavam, nem queriam saber de onde os outros vinham. O que importava não era se a pessoa tinha nome. O que importava era o que ela tinha a oferecer. Estavam todos empenhados em uma procura, procuravam não só o seu sustento de todos os dias, também procuravam alguma possibilidade, alguma esperança. Ela devia estar muito escondida mesmo.
Os meninos não entendiam nada do que cabelo de fogo falava, era uma língua muito estranha, coisa de louco mesmo. Apesar disso ele conseguia se fazer entender e era adorado pelas crianças. Estava sempre fazendo desenhos delas e também estranhas esculturas de material reciclável, o que por ali não faltava.
Marilu assustou-se muito do grito que sua patroa soltara.
O que é isso, patroa ?
Marilu, já sei o que vou fazer. Vou mandar comida para alguém!
Essa mulher é louca! pensou Marilu . . .
Falar isso era um pouco desnecessário, levando em consideração tudo o que estava acontecendo. Arlete estava ansiosa para explicar o que estava pensando fazer.
Marilu, vou mandar comida para um lugar onde tenha alguém precisando.
Marilu ficou pensando, puxa, mas isso é o que mais tem. Porém, não quis falar nada com medo que a patroa levasse a mal. Arlete sempre pensara que aquela comida toda que ia fora todos os dias podia ter um destino melhor. Quando o governo falou que iria organizar a coleta e distribuição de toda aquela comida que era desperdiçada, ela ficara exultante, mas mesmo sendo difícil admitir a maioria das coisas que o governo diz que vai fazer não acontece. Podia ser mais uma daquelas campanhas de brincar com a boa vontade das pessoas. Mesmo assim, a mulher estava ansiosa para começar aquela empreitada a primeira coisa que pensou foi como ia fazer para que a comida chegasse ao seu destino da maneira mais direta possível. Não era muito fácil mandar alguma coisa pelo caminhão de lixo, além do que, não queria que o alimento chegasse ao seu destino em más condições. Não é porque a pessoa está precisando que vai ser obrigada a passar por situações constrangedoras. Nisso, Marilu podia ajudar, afinal, andava de achegos com o motorista do caminhão do lixo, todos diziam que aquilo ia dar em casório.
Arlete estava feliz com a possibilidade de voltar a ter interesse por alguma coisa que não fosse uma obrigação, nunca tivera muita motivação para viver, isto é, nunca tivera tesão por nada a não ser sua filha. Era uma situação insólita. Fez questão de ela mesma cozinhar a comida, coisa que não fazia há anos. Tudo pronto, colocou em uma sacola que Marilu levou até o local onde o lixo era recolhido.
Devido ao grande volume de lixo produzido no condomínio, a coleta era feita dia sim, dia não. Deocleciano era o motorista do caminhão do lixo há dois anos. Apesar da rotina massacrante com muitas horas de trabalho, e do cheiro insalubre, estava contente com o emprego. Chegou ali naquela cidade há somente cinco anos e já conseguira um certo equilíbrio em sua vida. Bem diferente de sua cidade natal onde só existia a fome.
Deocleciano ficou emocionado com aquela estória. Estava surpreso com o fato de alguém fazer tudo aquilo para ajudar outra pessoa que está em dificuldade. Resolveu que ele mesmo levaria a comida dia sim dia não para o lixão e que lá resolveria a quem daria, não sabia porque mas pensou logo naquela figura estranha que vira vez ou outra por lá.
Com isso, Cabelo de fogo passou a ganhar quase todos os dias, uma refeição saborosa, sempre acompanhada de uma sobremesa. Solidário, o homem dividia tudo com os meninos, seus eternos companheiros. Arlete ocupava quase todo o seu tempo em preparar aquelas refeições, ficava horas pensando em como variar o cardápio, decorar os pratos e ajeitá-los. Marilu era só alegria, nunca depois do acidente vira sua patroa com aquele entusiasmo. Do outro lado da cidade, Cabelo de fogo recebia aquela comida como se alguém tivesse carinho por ele, e isso, de alguma maneira, o reconfortava. O homem não lembrava de nada, de onde viera e nem como fora parar ali naquele lugar, esquecido por todos. Um inexplicável elo constituíra-se entre essas duas almas atormentadas.
Amílcar estava há muito tempo no jornalismo, escolhera sua profissão ainda garoto, em um teste vocacional. Logo que entrara na faculdade, naquela época havia poucas, já começara trabalhando como foca em várias redações de grandes jornais. Ele aprendera com aquele pessoal da antiga, pois os caras não conheciam dificuldade, nunca se apertavam, bem ao contrário de hoje em dia, esses mauricinhos têm um monte de cursos e não sabem fazer nada, se tirar o computador deles ficam perdidos e são capazes de sair correndo. Por isso hoje não existe mais jornalismo de verdade com matérias, com investigação. Só existe um copiar do outro, que copiou do outro, que não acaba mais. Ele também foi vítima desse processo, seu chefe foi demitido porque eles queriam cortar os custos e botaram no lugar um garoto. Que filho da puta, pensou Amílcar. Ele o colocou nessa tal seção cotidiano e desde então percorre a cidade atrás de alguma estória interessante, com a sorte que tem . . .
O lixão era um dos primeiros lugares de sua lista, aquele mauricinho, olha onde eu tenho que me meter. Se eu tirar alguma coisa daqui eu mereço um prêmio, pensou Amílcar. Começou perguntando para saber o que acontecia por ali. O dia foi passando e não acontecia nada. Nenhum indício que apontasse para algo que desse uma boa estória. Quando estava quase indo embora, notou aquela figura estranha, um homem muito alto, com pele muito branca, cabelo e barba vermelhos. Não fosse pela altura, pareceria um duende, uma daquelas figuras encantadas que só podem sair da imaginação de alguém. Amílcar ficou interessado, aproximou-se do duende gigante e tentou um contato. De primeira, não conseguiu nada, pois o homem não falava coisa com coisa. Para ser mais exato, o cara falava em uma língua desconhecida. De qualquer maneira, alguma coisa lhe dizia que aquele homem daria uma boa estória. Não sabia ainda como, mas iria descobrir. Tirou uma foto com o celular e agradeceu. É nessas horas que a gente descobre o lado bom da tecnologia, e foi embora. Antes de ir para casa, passou pela redação e pediu pro Genésio colocar a foto no sistema e ver no que dava. O cara é um cão farejador, portanto, se tiver alguma coisa ele descobre.
Arlete seguia em sua nova rotina no preparo das refeições, procurava não mais pensar na sua vida anterior. Parecia que sua vida estava iniciando, estava ficando bastante envolvida, a ponto de começar a ter curiosidade e querer saber quem estava do outro lado, recebendo aquela comida. Marilu não achou boa aquela ideia, por pensar que qualquer proximidade com esse pessoal não seria nada bom. Arlete só sabia o que Marilu lhe dissera, o motorista do caminhão levava a comida direto pro lixão.
Amílcar chegou cedo à redação, estava com aquela curiosidade característica dos jornalistas. Foi logo à saleta onde o Genésio trabalhava. Chegando lá, ficou boquiaberto com a descoberta do Genésio. Bem que ele intuíra que alguma coisa iria acontecer, ainda levou uma semana levantando a estória toda. O cara era um engenheiro desaparecido, por isso ele usava aquele macacão marrom de uma grande firma construtora. Estavam fazendo uma ponte grande, ele era irlandês e fora contratado há pouco tempo, só falava inglês. Sumira há pelo menos três meses. O máximo que a polícia conseguiu foi encontrar o seu carro, alguns dias depois, em uma periferia. Após terminar o seu trabalho, entrou em contato com a família do ruivo. O homem só tinha uma irmã que já estava vindo de Londres, contava com ela para conseguir fazer com que o engenheiro lembrasse como tudo tinha acontecido. Isso porque Amílcar estava negociando com a televisão e não podia deixar escapar essa chance de sair do buraco.
Cabelo de fogo, na verdade chamava-se Bernard Shaw. Ele apareceu na televisão, no horário nobre, e deixou toda a audiência pasma com aquela estória que parecia até um filme e, bem ao gosto popular: muita surpresa e emoção. Na matéria do experiente jornalista Amílcar Furtado, descobriu-se até, que as estranhas palavras pronunciadas pelo nosso herói eram de um dialeto que só se falava em sua aldeia natal, no interior da Irlanda. Após o encontro com a irmã, o engenheiro se libertou do trauma e pode lembrar e contar como viera parar ali. Estava saindo do trabalho e a caminho do hotel, uma moça atravessou a rua, de repente, ele não teve tempo para nada. Depois, não se lembrava de mais nada até encontrar a irmã, a não ser que alguém, nos últimos tempos, cuidara muito bem dele, mesmo não sabendo quem ele era.
Do outro lado da cidade, Arlete assistia a tudo atônita. A única coisa que a mulher conseguiu lembrar depois foi que o desaparecido iria embora no outro dia, pois ele queria despedir-se dos amigos e fazer a última refeição e se possível, conhecer a pessoa que salvara sua alma. Era assim que o engenheiro se sentia em relação a essa pessoa que mandava refeições para ele e dispensara tanto carinho, sem mesmo conhece-lo. Em todo esse tempo, Arlete nunca tinha feito uma comida tão boa, foi pessoalmente entregar a Deocleciano o pacote com a última refeição, só pediu segredo de sua identidade, pois não queria aparecer por ter medo do sensacionalismo criado em torno da estória. Deocleciano agradeceu em nome do engenheiro, e em seu nome também, porque não era todo dia que via aquela solidariedade.
No outro dia, Marilu encontrou Arlete prostrada atirada no sofá, lamentou que a patroa voltasse àquela situação. Nem pôde contar a ela que o engenheiro que ela salvara havia morrido em circunstâncias suspeitas. Antes de sair, notou que Arlete estava com uma expressão sardônica no rosto.
(*) Conheci Ênio Andrade há pouco tempo, por acaso. Conversando com ele descobri que escreve e está empenhado em concluir um romance. A meu pedido me enviou este conto para publicar. Num contexto no qual, através das redes sociais, há tantas citações a autores famosos, muitos deles estrangeiros, escritores que vivem entre nós ficam desconhecidos mesmo quando, como é o caso, demonstram intrínseco valor literário (P.R.Baptista)
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